Acredito que muitos leitores tenham lido ou ao menos
ouvido falar de Monteiro Lobato. Ele foi o precursor da literatura infantil
brasileira, adaptando as obras dos Grimm, Andersen e Lewis Carroll e escrevendo
o clássico Sítio do Picapau Amarelo, que possui várias referências a
nossa cultura. Vocês sabiam que existe uma pessoa equivalente a Lobato em Portugal?
Ana de Castro Osório, nascida em 1872, foi responsável por criar histórias e
coletar vários contos orais portugueses, como o livro Contos Tradicionais
Portugueses, publicado pela primeira vez em 1908. Como faço na maioria dos
livros de contos, analisarei uma história de cada vez e no final darei meu
veredito. Comecemos:
História do rei turco – Um
pobre pai morreu, deixando como herança para seus três filhos uma velha manta
para se cobrirem. Os dois mais velhos decidiram comprar a parte do mais novo.
Como este era esperto, aceitou, na condição que ele ficasse no meio. Vendo o
quão foram enganados, os mais velhos decidiram sair pelo mundo em busca de
riqueza. O caçula pediu para ir junto e que este seria servo dos dois. Eles
aceitaram e foram os três viajar até pararem numa laje para descansar. Mas
aparece o gigante Rei-Turco, dizendo esta ser a porta do seu palácio. Com medo,
os rapazes se desculparam e o rei pediu para virem com ele, pois este lhes
daria emprego. Deu lhes comida e os deixou dormir, sem saber que o mais novo
estava acordado... O típico conto em que o mais novo se dá bem e os mais velhos
invejosos se dão mal. Teve uma parte em específico que me lembrou do conto do Pequeno
Polegar. Tem um ponto do conto que pessoas do politicamente correto não
irão gostar, que é quando o protagonista se pinta de preto para parecer de
outra etnia.
O conto da
cabacinha – Uma velhinha foi convidada para ir ao
batizado do netinho. Mas tinha medo de ir e ser comida por um lobo. A filha
disse para deixar de besteira e ir. A senhora foi e encontrou o lobo, porém
disse ao lobo que lhe traria um bolo do batizado e foi se embora. Então,
encontrou uma raposa... Um conto meio bobo. O final me lembrou Chapeuzinho
Vermelho.
História da menina
que deita pedras preciosas dos cabelos – Após a morte de
sua mãe, um irmão e uma irmã decidiram percorrer mundo afora. Quando ambos
adormeceram debaixo de uma árvore, três damas passaram por eles. Elas se
encantaram tanto com a menina que cada uma deu a ela uma benção: a de ter o rosto mais lindo; a de cair pedras
preciosas em seus cabelos e debaixo de suas mãos nasçam flores; e a de onde
suas mãos tocassem, surgiria água e peixinhos. A história me lembrou o conto Noiva
Galhuda* .
O príncipe das
maçãs de oiro – Um rei tinha três filhos e uma árvore que
dava maçãs de ouro. Mas quando dava, acontecia um temporal que ninguém tinha a
coragem de enfrentar e no dia seguinte, não havia mais maçãs. Até que um dia, o
príncipe mais velho se ofereceu para descobrir quem era o ladrão... Vocês
realmente acham que o príncipe mais velho tem a chance de ser o protagonista numa
história com três irmãos? Claro que não. O mais novo obviamente foi o herói e
os dois mais velhos invejosos se deram mal no final. Além desse clichê, tem também
o de fazer favores aos outros e do protagonista que desobedece o conselho de um
aliado. Pelo menos, na terceira vez, ele aprende e segue o conselho que lhe foi
dado e numa das vezes, o herói tinha um bom motivo para não segui-lo.
A fé é que nos
salva – Um homem do campo ficou doente e um médico
foi atendê-lo. O doutor escreveu a receita e a deitou na areia para secar a
tinta. Por fim, mandou o paciente seguir o que estava ali. Um conto cômico.
O criado Pedro – Um
padre teve vários criados chamados Pedro e com todos eles deu confusão.
Pediu então a uma pessoa encarregada que encontrasse um servo que não tivesse
esse nome. Acabou encontrando um rapaz chamado Pedro e pediu para este mudar
seu nome para José e servir ao abade. Mas este moço era por má sorte um Pedro
das malas artes. Outro personagem que faz literalmente o que pedem e se faz
de esperto. É impressão minha ou esse Pedro das malas artes foi
referência a Pedro Malazarte?
O príncipe do Lodo
– Um rei e uma rainha eram tão teimosos que viviam
brigando, até que o rei se cansou e mandou sua esposa para outra terra. No meio
da viagem de barco, nasceu o príncipe cuja mãe o chamou de Lodo. Após dezenove
anos, eles conseguiram sair da ilha pelo mesmo navio e, por algum motivo,
pararam no meio do caminho novamente. O príncipe pediu para ser amarrado e
jogado no mar. Lá embaixo, ele encontrou duas belas damas no castelo de conchas
com uma delas oferecendo uma tábua de jogo. Não tenho muito o que falar. Um
conto de fada típico.
História do senhor
Manuel Valente – Manuel Valente era um galego que depois
de tanto trabalhar, combinou com seus colegas de voltarem juntos para casa. Até
que no caminho, quando estavam passando por uma ponte, um deles olhou para a
água e viu a lua refletida. Ele achou que fosse queijo e chamou os outros
companheiros para olhar, até Manuel Valente ter uma ideia de como pegá-lo.
Conto decepcionante.
Os três galegos – Três
galegos foram para Lisboa aprender a falar lisboeta. Cada um ouviu uma frase e
ficou repetindo para aprendê-la, até que viram um corpo morto e foram para a
justiça. O próprio conto fala qual é a moral: “quem fala sem pensar, nem sabe o
valor das palavras.” Uma boa lição, mas senti pena dos personagens.
A raposa e o sapo
– A Raposa combinou com o Sapo de semearem trigo
juntos. Mas na hora de ceifar, a Raposa disse que não era boa e pediu ao Sapo
que arranjasse outro companheiro e para compensar, ela traria uma panela de
manteiga para o almoço. O Sapo aceitou e chamou o Texugo para ajudar. Na hora
de comer, a Raposa os convenceu comer no dia seguinte e que se acordasse suados,
teriam comido a manteiga antes da hora. Os dois foram dormir enquanto a Raposa
botava o seu plano em prática. É típico a raposa ser considerada um animal
esperto nas histórias, mas aqui, o enganado supera as dificuldades.
A princesa e o
pobre aldeão – Um rei e uma rainha tiveram uma filha com
dois sinais peculiares: dois cabelos em formato de um colchete e uma colcheta
que apertavam seu coração. Decidiram casá-la com quem adivinhasse seus sinais.
Vieram vários príncipes, mas nenhum acertou. Até que um pobre aldeão, vendo que a
família não tinha mais nenhum tostão, decidiu tentar. Ele embarcou numa jornada
até o palácio e no meio do caminho, encontrou um homem com o ouvido encostado
na terra. Ao perguntar o que ele estava fazendo, este respondeu que estava
ouvindo dois alfaiates a muitas léguas de distância... Um conto em que o
protagonista ganha vários aliados pelo caminho que o ajudam a conseguir seu
objetivo. Esse em específico, me lembrou o conto O Ignorante do livro O
Conto dos Contos - Pentameron**.
O doutor Grilo – Um
homem pobre chamado Grilo decidiu esconder a vaca do vizinho e se passar por
adivinho. O plano deu certo e o vizinho o recompensou. Só que sua fama chegou
aos ouvidos do rei, que o chamou para adivinhar quem foi que roubou o seu
tesouro. Às vezes, os enganadores têm sorte
e palavras fora do contexto podem ser interpretadas de outra maneira. Gostei do
conto.
A raposa e o gaio
– Um Gaio fez o ninho numa árvore bem alta até que uma
raposa chegou, dizendo que se não desse um de seus filhotes, cortaria a árvore
e comeria a todos. Com medo o gaio o fez. Só que no outro dia, a Raposa voltou,
exigindo a mesma coisa do dia anterior... Outro conto em que a raposa é
superada em esperteza. Este também possui uma moral no final da história de que
“se perde pela vaidade os que mais espertos se julgam”. Também gostei desse
conto, apesar da morte de filhotes de passarinho.
A raposa que foi
ao galinheiro – Uma raposa rondava o terreno de um rico
lavrador em busca de um jeito de comer suas galinhas. Até que viu
um pequeno buraco e usou-o para entrar. Primeiramente, ia só estudar o local
para planejar melhor, mas ao ver o tanto de galinha, pato e peru, não resistiu
e comeu tudo, ficando com a barriga enorme... Nesse conto, a raposa foi esperta
e se deu bem.
A afilhada de S.
Pedro – Um casal pobre tinha vários filhos , sendo
o último uma menina. Envergonhados de terem que pedir para mais um vizinho
apadrinhar, o pai foi ao mundo com a menina procurar um padrinho. Até que um
mendigo, que na verdade era São Pedro disfarçado, aceitou ser padrinho da
menina, na condição em que não dissessem para ninguém que era uma garota,
vestindo-a com roupas de menino e a chamando de Pedro. Este conto possui o
clichê de uma pessoa invejosa que tenta acabar com o protagonista dizendo que
este é capaz de fazer tarefas impossíveis, mas o ajudante mágico do herói ajuda
a cumprir estas missões. Apesar disso, achei a história boa, só não gostei da
parte em que o homem velho se casa com a moça jovem.
A amendoeira e o
diabo – Era janeiro e o diabo estava entediado.
Foi então para Terra ver como estavam as coisas. Viu que a amendoeira já havia
florescido e como ele era guloso, decidiu esperar os primeiros frutos
amadurecerem para ser o primeiro a pegar. Essa é a primeira vez que vejo o
diabo sendo enganado por uma planta.
Os três grãos de
milho – Um homem vivia preocupado com sua esposa, pois ela não comia
nada a não ser três grãos de milho. O amigo sugeriu que ele se escondesse no
telhado para ver se a mulher não estava escondendo nada. Ele gostou da ideia e
falou para esposa que ia viajar e pôs o seu plano em prática. Um conto meio
bobo.
O compadre do
diabo – Um homem pobre tinha um compadre muito
rico. Ele era o diabo, mas o homem não sabia disso. Um dia, o diabo lhe fez uma
proposta: o homem podia semear o que quisesse em seu campo, desde que ele
ficasse com o que estivesse embaixo e o homem ficasse com o que tivesse em
cima. Adoro histórias em que a pessoa engana o diabo.
O tolo e as moscas
– Um homem meio doido estava cansado das moscas
pousarem em sua cabeça raspada e foi a um juiz prestar queixa contra elas. O
juiz, que já o conhecia, quase riu, mas o atendeu com seriedade, dizendo que
toda vez que o homem visse uma mosca, podia dar lhe uma palmada. O juiz devia
ter tido cuidado com as palavras...
Sumido sejas tu
como o vento – Num reino, havia uma princesa muito
estimada por todos. Um dia, quando brincava com seu noivo de pique-esconde, a
jovem não o achava e, irritada, falou: “Sumido sejas tu como o vento!” E o
príncipe sumiu, não o achando em lugar nenhum. Depois de um tempo, a moça foi
ao jardim cortar uma flor para pôr no cabelo até que ouviu uma voz perguntando
se preferia passar os trabalhos em nova ou em velha. Conto que mostra a
rivalidade entre um pai e seu genro, fazendo a garota escolher entre os dois.
Março Marçagão – Uma
mulher era muito preguiçosa e não gostava de trabalhar enquanto seu marido dava
um duro danado. Ele sempre pedia para ela coser, mas ela sempre dava uma
desculpa, até que ele falou que Março Marçagão iria aparecer e que se não
tivesse meadas, ela iria pagar... Este conto com certeza seria cancelado pelas
feministas. Pelo que pesquisei, Março Marçagão vem do ditado popular português
“Março marçagão, manhã de Inverno, tarde de Verão” que descreve o clima
imprevisível do mês de março.
São contos bons. Alguns têm aqueles mesmos clichês que já
vi em contos de fada, mas teve outros que achei interessante, como o das
histórias em que a raposa se dá mal, pois mostra que, algumas vezes, quem se
acha esperto e tenta dar o golpe em outro, pode se dar mal, e que alguém pode
superá-lo em esperteza. Também gostei dos textos que um personagem fala uma
frase e é interpretado de outra forma como em A fé é que nos salva e O
doutor Grilo.
Algo que se deve ter em mente quando ler este livro é que
a autora é portuguesa, por isso, terão algumas palavras que nós não iremos
entender. Como por exemplo quinteira e saloio. Tentei procurar o significado de
coifa, mas não tive sucesso.
Recomendo a leitura deste livro a todos que queiram
conhecer alguns dos contos de fadas portugueses. Se deseja ler este ou qualquer
outro livro da autora, te desejo sorte, pois os livros lançados dela aqui no
Brasil são raros. Este volume que analisei foi comprado em Portugal. Mas se
conseguir obtê-lo, cuidado. Não seja enganado pela raposa.
*Resenha do conto Noiva
Galhuda: Ponte
para o Imaginário: Os Melhores Contos de Fadas Nórdicos
**Resenha do livro O
Conto dos Contos - Pentameron: Ponte
para o Imaginário: Pentameron