sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Cartas de Araci

               Ilustração digital de Anna Maia


         Lara havia perdido a perna em um acidente de carro. Desde esse dia, só podia andar com a ajuda de muletas. Morava perto de um rio no Amazonas, que diziam que havia uma sereia vivendo lá. Ela acreditava nisso quando era pequena. Mas já tinha onze, quase doze anos e se achava muito velha para acreditar nesse tipo de coisa. E naquele momento, não estava para acreditar em nada. Não poderia correr nem ao menos andar rápido. Jogar bola? Nunca mais. Pelo menos, não do jeito que fazia antigamente.
Todos tentavam de tudo para fazê-la se animar, mas não conseguiam. Até que sua avó Maria, que morava no Ceará, decidiu que estava muito velha para morar sozinha e decidiu, com a permissão da filha e do genro, morar com eles. Ela trouxe consigo um hobbie que adorava fazer no estado onde nasceu: silicogravura, fazer desenho com areia colorida em garrafas. Resolveu ensinar a Lara, para ver se isso a animava. Isso funcionou por um tempo, pois ela se dedicou em fazer detalhadamente o desenho da paisagem que conhecia muito bem: sua casa, o rio e um barco, porque sempre tem um barco nessas garrafas. Mas como era perfeccionista e não estava no melhor dos humores, quando errou a parte da madeira do barco, que ficou mais parecendo um borrão misturado com a areia azul da água, ficou chateada e jogou a garrafinha no rio.
No dia seguinte, quando estava saindo para olhar o rio e pensar em como a vida lhe fora injusta, uma de suas muletas bateu em algo de vidro no chão. Era uma garrava grande e verde. Estava molhada por fora e com um papel dentro. Curiosa, voltou para casa, tirou a tampa e pegou uma pinça para tirar a folha de dentro. Pra que tanto trabalho para colocar a folha dentro de uma garrafa? Não é mais fácil colocar na caixa do correio. Pensou ela. Ao tirar, logo viu que era uma carta:
À pessoa que jogou uma pequena garrafa no rio,
Não sei quem é você, mas acho que deve entender algumas coisas. Em primeiro lugar, não se deve jogar nada no rio. Além de poluir, pode acabar acertando a cabeça de alguém (como foi o meu caso). Segundo, por que você jogaria algo tão bonito como isso?  Nunca vi algo parecido. A areia aqui do rio não é tão colorida como essa. E o desenho. Que desenho bonito! É quase tão bonito quanto o meu rio. E é tão detalhado. Parece que o rio está batendo na madeira do barco. Já que jogou no rio, acho que você não se importa de eu ficar com ele, não é mesmo?
Pois bem, por favor não jogue mais nada no rio, principalmente na minha cabeça. Mesmo se for algo tão bonito quanto isso.
                                               Araci, a princesa sereia do rio.

Lara achou engraçado. Minha avó realmente tem criatividade. Dona Maria era responsável pelos presentes do papai Noel quando vinha comemorar o Natal com a família. Ela sempre inventava uma distração criativa para ela e seus primos não verem os pais colocando o presente na árvore. Assim como a lenda da sereia, Lara também já deixara de acreditar em papai Noel. Ela ainda não percebeu que já cresci o suficiente para saber da verdade. Mas vamos ver até onde ela vai com isso. Foi até a sua mesa no quarto, arrancou uma folha de papel do seu caderno e começou a escrever:
Araci,
Meu nome é Lara. Sinto por ter jogado a garrafinha na sua cabeça. Fico feliz que tenha gostado. Achei interessante o fato de você ser sereia. Poderia me contar um pouco mais sobre isso? Eu li um conto chamado “A pequena sereia” que dizia que vocês viviam até uns trezentos anos viravam bolhas quando morriam. Isso é verdade? Se você é a princesa do rio, quem é a rainha?
                Lara.

Acabando, Lara enrolou o papel e colocou dentro da garrafa, deixando-a do lado de fora, próxima a porta. No dia seguinte, a garrafa tinha sumido. Dois dias depois, ela estava posta no mesmo lugar, molhada como na primeira vez e com uma mensagem nova. E no mesmo estilo da primeira vez, Lara pegou a carta e leu:
Oi Lara,
Não esperava que você fosse me responder. Na verdade, não esperava nem que você fosse ler a minha mensagem. Aqui no rio, nós usamos as garrafas que vocês humanos jogaram para mandar mensagens umas para as outras. Essa daí é a garrafa que eu uso, por isso a peguei de volta. Respondendo suas perguntas: minha mãe é a rainha Iara. Sim, aquela Iara que vocês humanos falam, que atrai homens para o fundo do rio com sua bela voz (se bem que ela anda meio parada ultimamente). Ela tem pelo menos uns oitocentos anos, pois ela já era adulta quando os portugueses chegaram ao Brasil. Uma diferença de idade grande entre ela e o meu pai. Por falar nele, se você encontrar um homem todo de branco usando chapéu, ignore-o. Ele não é a vitória-régia que se cheire. Ele e minha mãe nunca tiveram um relacionamento sério, e ele nunca o terá com ninguém.
Quanto a como nós morremos, eu nunca vi uma sereia morta. Mas minhas amigas do oceano Atlântico dizem que já viram o corpo de uma perto de um navio antigo no fundo do oceano. Parece que viramos madeira depois que morremos.
Agora é a minha vez de fazer perguntas: como é aí em cima? O que são esses animais esquisitos que soltam fumaça pela... pelo traseiro?  Aguardo ansiosa pela resposta.
                                Araci.

Uau! Muito engraçadinha é você, vovó. Mas vamos ver se ela vai inventar uma resposta boa para isso. Lara arrancou outra folha do seu caderno e escreveu:
Oi Araci,
Aqui na superfície nós controlamos esses “animais que soltam fumaça pelo traseiro”. Existem várias espécies deles como os carros, os ônibus, os caminhões e outros tipos. A vida aqui em cima é chata, pois temos que ir em lugares como a escola. E para mim, ficou ainda mais difícil já que eu perdi uma perna em um acidente e não posso caminhar sem a ajuda de muletas (objetos prateados, parecido com galhos). Também não posso mais fazer atividades que envolvam correr.
Mas falando outro assunto, pela descrição que você me deu do seu pai, ele é o famoso boto cor de rosa que se transforma em homem quando vem para a superfície. Gostaria que me respondesse uma coisa: como um boto, que é um mamífero ter uma filha com uma sereia, que é metade peixe? Isso não é biologicamente possível, é? Li isso em uma revista de animais. Aguardo a resposta.
                Lara.

Fez a mesma coisa que havia feito com a mensagem anterior e esperou a resposta, que veio três dias depois:
Oi Lara,
Sinto muito com relação a sua perna. Caminhar pela terra sem uma delas deve ser bem difícil. Bem, na verdade, caminhar com ambas já é difícil. Já cheguei a me transformar em humana algumas vezes, sem ninguém ver e tentei caminhar com essas “pernas”. Caí um monte de vezes nas minhas primeiras tentativas e ainda tenho que caminhar devagar para não cair. Como vocês conseguem? Devem ter se acostumado desde que eram pequenos, não é? Prefiro muito mais minha grande cauda, que é bem mais potente para a água do que essas pernas fininhas. Mas ela não é boa para caminhar na terra. Cada uma com suas vantagens, não é mesmo? Acho que você se daria melhor como sereia então agora que só tem uma perna. Só precisa fortalecê-la para ficar forte.
Com relação a biologia, sereias não são peixes, são mamíferas. Mais de oitocentos anos e vocês ainda acham que somos peixes, acho que é porque toda a vez que um humano encontra uma sereia, não volta para desmentir esse erro. Nossas caudas não têm escamas, são borrachudas que nem a dos botos, por isso minha mãe e meu puderam fazer... aquilo. Agora, fica na sua cabeça que nós somos mamíferas. Nós temos nadadeiras caudais, que ficam na posição horizontal e os peixes têm barbatana caudal, que fica em posição vertical. Espero que com essa informação, você possa corrigir os outros.
                                Araci.
Lara foi logo procurar nos livros de seu pai, que era biólogo, o que era nadadeira caudal e barbatana caudal. Quando viu as imagens, finalmente entendeu o que ela quis dizer. E também descobriu que as orcas eram golfinhos e não baleias. Acabando de se informar, tirou a conclusão de que não poderia ser sua avó que escrevia essas cartas. Ela não tem esse conhecimento dos animais. E ela seria mais sensível com relação a perda da minha perna. Será que é o meu pai? Não, não pode ser. Ele nunca foi bom em escrever cartas desse tipo. Então, quem? Também não podia ser a mãe, por ser tão sensível com relação a sua perna. Descobriria de qualquer jeito:
Oi Araci,
Obrigada por me responder. Você me contou várias coisas interessantes. Por que não marcamos de conversar aqui em casa? Você pode se transformar em humana e eu te apresentarei a cidade. E antes, podemos comer brigadeiro, doce delicioso que minha avó faz de vez em quando. É só a gente marcar que ela faz. O que você acha?
                Lara.

Se ela dissesse que não, Lara a enrolaria até o dia em que seus pais iam para a festa na casa do vizinho, deixando-a sozinha com sua avó. Ao contrário de seus pais, a avó Maria era muito liberal com relação ao horário de dormir. Ela gostava de dormir cedo, então seria fácil para Lara esperar a avó dormir e ficar acordada a noite, perto da janela da porta. Se fosse mesmo a avó por trás das cartas, ela ficaria acordada para descobrir. Mas tinha certeza que não era a avó. Dois dias depois:
Oi Lara,
Adoraria combinar um dia para ir em sua casa. Mas temo lhe dizer que sou muito tímida. Consigo escrever essas cartas porque não eu não apareço nelas. E tenho receio das ações feitas pelos meus pais. Acho que se me achassem e descobrissem isso, eu seria morta pelas ações deles. E outra coisa: não sou muito boa em andar com essas “pernas”. Já é um esforço eu sair à noite para pegar e colocar a garrafa perto de sua porta. Aproveitando, lhe peço para que não fique acordada para tentar me ver. Se você fizer isso, nunca mais lhe escrevo, o que seria uma pena, pois tenho gostado de nossas conversas.
                                Araci.

Eu sabia que ela ia arrumar uma desculpa! Mas não vou desistir. Vou ter que enrolá-la até o dia da festa:

Oi Araci,
Entendo que não consiga andar direito por ser uma sereia. Mas com prática, você pode acabar conseguindo. Acredite, eu já estou até me acostumando a andar de muletas. Se eu posso, você pode. Por isso, vou te propor uma coisa. Eu te darei outra dessas garrafinhas de areia se você vier a superfície de dia e caminhar por aqui. Por três dias, me descrevendo suas experiências. Não precisa conversar com ninguém, só passear. Então, você aceita?
                Lara.

Oi Lara,
Eu aceito a sua proposta. E se me permite, quero escolher como será a minha garrafinha. Gostaria que você desenhasse uma praia. Eu vivo nesse rio por anos e nunca vi o oceano. Só o conheço por descrições de amigas que vieram de lá. Logo vou lhe escrever minhas experiências.
                                Araci.

Mal recebeu a resposta e Lara começou a produção de uma garrafinha de areia colorida, pedindo auxílio da avó. Maria ficou contente com o interesse e a determinação da neta, que não parecia estar mais deprimida. Ajudou no máximo possível. Terminaram em um dia. No dia seguinte, veio a carta:
Oi Lara,
Hoje, eu saí do rio bem cedo. Saí pela floresta, pois não queria que ninguém visse minha transformação. Foi uma longa e dolorosa caminhada até chegar ao local onde você mora. Tropecei umas sete vezes antes de chegar e umas cinco quando eu cheguei. Num desses tropeços, fui ajudada por um homem de uniforme, que aparentemente tinha domado um desses “carros”, junto com mais dois homens. Ele disse para tomar cuidado. Algumas vezes, via papeis e garrafas jogadas no chão. E quase pisei em um objeto que não identifiquei, mas fedia muito.
Vi muitos desses “carros” correndo pela rua. Como são rápidos. São mais rápidos que os barcos. E também são muito coloridos. Quase que um deles me pegou. O mesmo homem de uniforme me deu bronca e perguntou se eu não sabia olhar o sinal. Respondi que não e ele me explicou como se eu fosse uma criança burra e ignorante. Foi humilhante. Por mim, eu não voltava mais para a superfície depois dessa. Mas quero muito essa garrafinha. Tomarei coragem para ir amanhã. Vou ter que me preparar psicologicamente.
                                Araci.

Dois dias para a festa:
Oi Lara,
Nesse segundo dia, eu fui um pouco mais tarde, no horário de almoço. Como ontem eu estava assustada demais, eu tinha voltado mais cedo. Hoje, eu resolvi tomar coragem e almoçar no que parece ser um comércio de comida, que não tem no rio. Entrei em um lugar chamado “Lanches da Lurdinha”. Pedi um suco de laranja, um hambúrguer e batatas fritas. Devo dizer que a culinária daqui é estranha, mas deliciosa. O estranho é que eu tive que pegar a minha comida ao invés de eles me servirem na mesa, como acontece no meu reino.
Antes de eles me entregarem a comida, eles me cobraram algo chamado dinheiro. Eu não sabia o que era, mas parecia ser uma coisa valiosa, então ofereci meus brincos de pérolas negras como pagamento. Recebo um monte deles de presente do povo do oceano Atlântico, um par não me faria falta. Primeiro, eles acharam que isso era falso e só aceitariam esse dinheiro ou um cartão, seja lá o que isso for. Então, veio a dona da loja, que suponho que seja a Lurdinha e deu uma olhada nos brincos. Ela disse que conhecia brincos de lucho quando via e os aceitou como pagamento. Depois de eu almoçar, eles me ofereceram três tipos de sobremesa diferente: um brigadeiro, um pedaço de torta de açaí e um pedaço de pavê de morango. Muito bom! Acho que posso ir lá de vez em quando, já que eles aceitam pagamento em brincos.
                                Araci.


Quando acabou de ler essa carta, Lara falou aos pais que queria almoçar no Lanches da Lurdinha. Insistiu tanto que eles foram. Ela perguntou a um funcionário se ontem ele havia visto uma garota estranha que oferecera brincos como pagamento ao invés de dinheiro. Ele respondeu que não estava trabalhando ontem. Perguntou então ao outro funcionário, mas este respondeu o mesmo. Os trabalhadores revezavam os turnos e nenhum que estava ontem estava ali hoje. Só a dona Lurdinha. Lara não conseguiu falar com ela, mas viu em suas orelhas um belo par de brincos com pérolas negras, que tinham quase o tamanho de uma moeda de dez centavos. Faltando um dia para a festa:
Oi Lara,
Esse é o último dia do nosso acordo, e com isso, lhe peço para já ir colocando a minha garrafinha junto com a outra para eu buscar. Hoje, foi o dia dos tropeços. Mas não pelas minhas caminhadas, mas sim por causa do jogo. Eu vi umas crianças brincando com uma bola, usando suas pernas. Achei que seria interessante treinar as minhas, então perguntei para elas se elas poderiam me ensinar a jogar. Elas disseram que sim e fomos jogar. Eu me arrependi. Caí várias vezes. Uma foi de cara no chão e outra foi pisando na bola. As crianças morreram de rir e me apelidaram de tropecinho. Fiquei muito suja, mas nada que o meu rio não limpasse depois.
Como isso me deixou nervosa, me sentei em um banco e comecei a cantar, pois minha mãe disse que quem canta, seus males espanta. Ou atrai vários homens para si. Foi mais a segunda opção. Quando me dei conta, estava cercada de crianças olhando para mim com curiosidade. Elas pediram para eu cantar mais. E eu cantei. Elas também cantaram junto comigo. Acho que foi um bom dia para fechar a nossa troca. Fico feliz por ter aceitado.
                                Araci.

No dia seguinte, havia algumas crianças de sete para oito anos comentando sobre uma moça que tropeçava muito e cantava muito bem. Porém, novamente, Lara não conseguiu alcançá-las para perguntar detalhes. Na hora da festa, aconteceu como Lara havia pensado. Seus pais saíram e sua avó estava dormindo no quarto dela. A garrafinha de areia colorida havia sido deixada junto com a garrafa maior, que dessa vez não continha nenhuma mensagem. As luzes da sala estavam apagadas. A porta estava fechada, mas não estava trancada para facilitar a Lara de sair atrás de Araci. Sim, ela estava esperançosa que fosse a sereia. Não se sentia assim desde que tentou pegar o papai Noel colocando presentes na árvore, só para se distraída pela avó Maria. Dessa vez, isso não ia acontecer. Estava embaixo da janela próxima a porta, vigiando cada movimento possível. O único barulho que era possível ouvir era o da música da festa do vizinho.
Ela ficou acordada até dar meia noite. Estava quase dormindo do quão entediada e com sono estava. Estava quase fechando os olhos quando ouviu passos sobre a grama. Estava chegando mais perto. Parecia estar usando vestido. A figura deu um tropeço, mas logo se levantou. Chegou perto da porta e se abaixou para pegar as garrafas. Era o momento. Lara abriu a porta rapidamente, apoiando em suas muletas. Fez um grande barulho. Não deu para ver direito a figura, mas era obviamente feminina. Ela correu. Lara foi atrás:
- Espere! Volte aqui!
Lara foi atrás dela o mais rápido possível. Havia melhorado o jeito de manipular as muletas, mas ainda sentia como tivesse três pernas e duas delas fossem desengonçadas. Gente da festa ao lado haviam ouvido os seus gritos e estavam indo em sua direção. Lara achou ter avistado um homem todo de branco, incluindo o chapéu, mas não teve tempo para reparar em mais detalhes. Seguia a figura, que estava indo em direção ao rio. Corria muito, quase tropeçando, porém, não se deixava abalar. Lara ia atrás dela ferozmente.
Ao chegar perto do rio, a figura pulou. Lara largou as muletas e também deu um salto. Foi nadando até o fundo do rio, sem nada encontrar. Mexeu sua cauda com mais força, como a sereia que era até pegar algo na areia do rio. Nadando até a superfície, Lara sentiu o pequeno objeto redondo em sua mão. Negro como a noite era a pérola que segurava.





sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Caminho para a aceitação da perda



              Esse é mais um outro livro que ganhei há anos atrás e só agora decidi ler. E é claro, o motivo por não ter lido antes foi porque eu já havia assistido o filme e, nesse caso, não havia gostado do final, pois era triste. Ponte para Terabítia foi escrito em 1977 por Katherine Paterson que nasceu na China, mas foi para os Estados Unidos quando ainda era criança. Recebeu vários prêmios literários, incluindo o prêmio Hans Christian Andersen, designado a literatura infanto-juvenil. A versão que tenho nas mãos foi traduzida por Ana Maria Machado, famosa escritora de literatura infantil brasileira.
            Jess é o único menino de cinco filhos de sua família, ajudando-a nos afazeres de casa enquanto o pai trabalha fora. Sua vida nessa cidade pequena era meio sem graça, até a chegada de Leslie, uma garota que veio da cidade, trazendo consigo sua imaginação fértil e seu conhecimento de mundo.
            Já aviso logo que esta resenha terá spoilers, pois não tem como eu falar desse romance sem debater pontos-chave importantes dessa trama. A autora escreveu essa história para consolar o filho David Patterson, após sua melhor amiga Lisa Hill morrer aos oito anos ao ser atingida por um raio. Por essa informação, dá até para adivinhar o que irá acontecer com Leslie no livro, e ele faz um bom trabalho quanto à aceitação de Jess com esse ocorrido. Por isso, vou focar no que mais me chamou a atenção.
            O livro é centrado depois da guerra do Vietnã (1975), por isso, há certas diferenças nos costumes, como o preconceito da cidade pequena com o uso de calça jeans e a falta de batom em uma mulher, considerando-a uma hippie, ou uma professora convidar um aluno para ir com ela a um museu sem pedir permissão aos pais, o que hoje em dia levantaria suspeitas. Porém, há certas passagens que fazem lembrar da minha própria infância, como a divisão das brincadeiras entre meninos e meninas. Leslie querendo brincar de corrida com os meninos já era motivo para ser zoada por eles. Como uma criança dos anos 2000, fui criada por essa divisão no recreio (com exceção de uma menina que jogava futebol com os meninos e dois meninos que brincavam com as meninas, provavelmente por não gostarem de futebol) e era assim: um dia as meninas brincavam de queimado e os meninos de futebol. Outro dia, as meninas brincavam de pique-pega e os meninos de futebol. Em outro, as meninas brincavam de pique-fada e os meninos de futebol. E mais outro, as meninas brincavam de polícia e ladrão e os meninos de futebol. Os meninos eram muito criativos nas brincadeiras, não é mesmo? Falando sério, não sei como estão as brincadeiras dos dias de hoje, mas gostaria de saber se as divisões entre coisas de menina e coisas de menino fazem bem para as crianças. Não lembro de essa menina e esses dois meninos terem sofrido algum preconceito no início, porém, não me surpreenderia se tivessem.
Hoje em dia, tentamos deixar as crianças à vontade com os seus gostos, independente de seu gênero, mas ainda sinto que existe essa exigência do menino ter que ser forte e não demonstrar o que sente, como quando Jess não abraça o pai mesmo sentindo falta do afeto e das meninas gostarem apenas de coisas bonitinhas e delicadas e não gostarem de esportes, como quando os meninos não aceitaram Leslie no início, se não fosse Jess perguntando para o líder se ele estava com medo de perder para uma garota. Isso é um caso para se pensar.
            Ponte para Terabítia teve uma adaptação para o cinema em 2007, produzido pelo filho da autora, que também foi um dos roteiristas e, é claro, tem suas diferenças. No filme, inverte as cores de cabelo dos personagens principais (Jess é loiro e Leslie é morena e com o cabelo bem mais curto no livro). Ele também é muito comparado com as das Crônicas de Nárnia. Mas esse livro não é de fantasia. A fantasia fica só na mente das crianças e não aparece muito quando comparada com o filme. Nem mesmo quando Jess corre para perto do riacho fugindo de um ser após a morte de Leslie, revelando ser o seu pai, querendo consolá-lo. Essa cena é do filme e não tem no livro, mas é uma cena bonita. O pai realmente vai consolá-lo perto do riacho, após Jess jogar as tintas que Leslie deu a ele de Natal. O filme, é claro, encurta e tenta atualizar para os dias de hoje o que tinha no romance, mas consegue pegar bastante coisa. O livro tem ao todo treze capítulos e é um slice of life (“pedaço da vida”) para crianças de onze, doze anos.
            Apesar do romance em si não ter muito a ver com As Crônicas de Nárnia, Leslie é uma leitora desses livros e se influencia nesses livros para criar Terabítia, dizendo que para chegar lá, precisava usar a corda presa na árvore e se balançar nela. Isso lembra de como os quatro irmãos chegaram à Nárnia pelo guarda-roupa. Ela empresta todos os livros para Jess depois. Leslie não é de família religiosa, por isso se encanta com a história de Jesus comparando-a com a de Abraham Lincoln, Sócrates e Aslam das Crônicas de Nárnia, que teve como base o personagem de Jesus Cristo. Isso é muito esquisito para uma cidade pequena, que vai à Igreja todos os domingos (menos a família de Jess, que só ia na Páscoa devido a mãe ter brigado com o pastor).

            Lembro do porquê não querer ter lido essa história quando a ganhei. Foi porque eu havia visto o filme e o que tinha acontecido com Leslie. Fiquei chateada, pois achava que esse filme era um daqueles clichês de que a criança que tem uma vida medíocre se transforma com a chegada de alguém cheio de ideias, melhorando assim a sua vida. Então o que aconteceu foi um BOOM para mim. Mas acho que esse BOOM é importante ser mostrado para as crianças, pois a vida nem sempre é flores. Ponte para Terabítia daria um ótimo livro paradidático para crianças de onze, doze anos. Também aconselho aos adultos que leem. Atravesse a ponte para o imaginário e se aventure com Jess pelo estranho lugar que é a realidade.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Brincação

b   r   i   n   c   a   d   e   i   r   a    d   e     m   e   n   i   n  a
r                                    o     d
i                                r            a                  p
n                                   o    d                     e
c                                                                 g
a                                                       p  e  g  a 
d
e
i                                              t  a  n  t  o  
r                                                       r          d        
a                                                             a    
                   q  u  e        a  t  é               g
d                                                         e
e                                                         p

m
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o