sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Por baixo do véu


 

              Continuando com minhas leituras que envolvem a mitologia grega, dessa vez trago a resenha do livro Até que tenhamos rostos, escrita por C. S. Lewis, autor conhecido pelos livros das Crônicas de Nárnia.

            Orual a rainha de Glome, está velha e não teme mais a morte. Por isso, decidiu escrever sua história e acusar os deuses, principalmente o que vive na Montanha Cinzenta, pelos crimes que cometeram contra ela.

            O livro conta a história de Cupido e Psique, conto que aparece pela primeira vez no livro Metamorfoses ou O Asno de Ouro de Lucius Apuleio, só que pela perspectiva da irmã mais velha de Psique. Na obra de Apuleio, ambas irmãs de Psique são descritas como invejosas e planejaram arruinar o casamento da caçula de propósito. Mas aqui, Orual amava sua irmã, e foi este amor que condenou sua relação com ela. Enquanto Redival, a segunda irmã, nutria sentimentos de inveja, porém aparenta sentir um certo arrependimento de suas ações. Infelizmente, Redival não aparece muito. Teria sido interessante ver a sua versão dos acontecimentos.

            Quanto aos outros personagens, temos o rei, pai de Orual, que é covarde, orgulhoso e temperamental. Ignora claramente as filhas e até as agride em certas ocasiões, além de ser um péssimo governante; Raposa, um escravo grego, responsável pela educação das meninas e lhes tem um grande carinho; Bardia, o soldado leal do rei, cujos pensamento são bem simples, mas é um ótimo guerreiro e marido; o sacerdote de Ungit, devoto religioso; e por último, mas não menos importante, Istra, ou Psique como ela é conhecida por aqui, jovem de beleza notável e muita paciência.

            O romance mistura o real com o fictício, pois locais como a Grécia com suas filosofias e crenças, são apresentadas junto ao reino de Glome, um reino bárbaro, cuja sua principal deusa é Ungit (Afrodite). E na língua de Glome, o nome da irmã caçula de Orual é Istra, mas esta a chama de Psique pois este é o seu nome em grego, cujo idioma aprendera com seu mentor, Raposa.

            Há muito o que se falar deste romance. Ele abre a porta para várias discussões, principalmente quando se trata da protagonista. A princípio, pude comparar a relação de Orual e Psique como a de uma mãe que não quer se separar da filha, como a Deméter e Perséfone. Deméter traz o inverno e a fome quando não está com a filha enquanto Orual faz com que Psique traia a promessa que fez ao seu marido para que sua irmã não se matasse. O próprio livro a compara com Ungit, que exige sacrifícios humanos enquanto Orual rouba vidas para lhe servirem. Mas acredito que isso seja um exagero causado pela culpa que a protagonista sentia, pois Orual foi uma boa governante de forma geral, como libertar seus antigos escravos e oferecer liberdade àqueles que trabalharem por um tempo na mina.

            Por falar em Ungit, Orual também pode ser comparada com a própria Psique, pois esta também foi comparada à deusa. Ambas podem ser consideradas como metades do amor como sentimento, sendo uma a parte boa e bela que se sacrifica pelos outros e a outra feia e egoísta que age em prol de sua própria felicidade, fingindo que é pelo bem estar do outro. O amor divino e o mortal.

            A própria Orual divide a si mesma como duas figuras: a dela mesma como Orual e a da rainha. A rainha seria como uma máscara que ela apresenta para seus súditos, como a de uma mulher séria, respeitável e que nada teme. Enquanto Orual seria o seu lado sentimental, fraco, que teme ser abandonada por aqueles que são próximos. Algo interessante é que ela passa a usar um véu que cobre o rosto, como uma máscara que esconde seus sentimentos mais profundos.

            Também há o dualismo feminino e masculino na protagonista. Por ser considerada feia, a opção de atrair homens através de sua beleza foi negada à Orual. Mas ela desenvolveu-se tão bem na luta de espadas que Bardia mencionou ser uma pena que ela tenha nascido mulher. Ao mesmo tempo que ela inferioriza a esposa de Bardia por nunca ter visto ou compartilhado momentos com o marido na batalha, ela ao mesmo tempo sente inveja por nunca tê-lo visto em seus momentos de fraqueza, algo que ele só mostrava à companheira. É irônico, porque mesmo que ela demonstre mais seu lado masculino, ela ainda assim é comparada a Afrodite, a deusa da fertilidade, considerada a mais feminina das deusas gregas.

            Raposa e Bardia são duas figuras que também abrem caminho para se pensar, e a própria protagonista as usa para tomar suas decisões. Raposa é um homem cético com relação aos deuses, que não acredita na existência deles e que seus poderes e aparições são apenas ações da natureza ou fruto da imaginação da pessoa. Enquanto Bardia, assim como todo povo de Glome, acredita firmemente neles e teme provocar sua ira.

            Uma curiosidade interessante de se falar de C. S. Lewis é que ele era cristão e que várias de suas obras tratam desse tema. Até que tenhamos rostos é uma destas e foi considerado pelo seu autor o melhor livro que ele escreveu.

            Como disse anteriormente, Até que tenhamos rostos é um livro introspectivo, que te faz pensar e é cheio de simbolismo. Porém, o livro tem poucos acontecimentos que sejam fora da cabeça de Orual. Queria que ela tivesse narrado mais aventuras para que o romance tivesse mais equilíbrio entre os acontecimentos do reino e os pensamentos da rainha, principalmente do meio para final. Apesar disso, foi uma boa jornada. Se quiserem fazer o mesmo, vão até onde ficava o antigo reino de Glome e escalem a Montanha Cinzenta. Lá, vocês vão encontrar o mais belo castelo que já viram. Ou não.

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