sexta-feira, 25 de abril de 2025

Releitura do Primeiro Assassino

 


            Já li livros que foram inspirados na Bíblia, sendo um exemplo deles As Crônicas de Nárnia. Mas não lembro de nenhum que pegue um personagem específico da Bíblia e faça uma releitura de sua história. O que seria uma releitura? É você pegar uma história e reescrevê-la, deixando apenas elementos que deixem claro que foi inspirado no texto original, como por exemplo os nomes e o ambiente que os personagens vivem. Ou em certos casos, tampar buracos que o original deixou. Caim, escrito por José Saramago em 2009 faz os dois.

Todos sabem a história de Adão e Eva. E de Caim e Abel. Pelo menos, pela perspectiva bíblica. Ao matar Abel, Caim é castigado a vagar pela Terra, mas Deus lhe marcou em sua testa para que não fosse morto por ninguém. O que acontecerá com Caim após isso?

            Algo que não esperava em uma releitura da Bíblia era viagem no tempo. Neste livro, Caim viaja em diferentes acontecimentos bíblicos do Antigo Testamento e, em cada um deles, faz com que sua visão sobre Deus fique negativa. Ele já era revoltado com Deus desde que este recusou a sua oferenda em favor do irmão e disse tê-lo matado por não ser capaz de fazer isso com a própria divindade. Apesar de seus defeitos, não é difícil simpatizar com Caim (pelo menos até o penúltimo capítulo), ainda mais quando o romance mostra que Deus assassinou mais gente que o próprio, o que, caso você tenha lido a Bíblia, você saberá que é verdade.

Além de reescrever a história, o escritor também tampou alguns buracos deixados pela Bíblia, como o nome da mãe do filho de Caim, que não tinha nome no original, mas aqui é chamada de Lilith. Provavelmente, ele pegou justamente esse nome pois em algumas histórias judaico-cristãs, Lilith foi a primeira esposa de Adão. No Antigo Testamento, Deus diz que quem cultuá-lo, não pode cultuar outros deuses. Enquanto aqui, fica implícito que há outros deuses pois Adão e Eva não eram os únicos humanos. Ou talvez o Deus desse livro seja tão perfeccionista que criou aqueles humanos há muito tempo atrás e, não satisfeito com o resultado, criou Adão e Eva para recomeçar. Esse comportamento condiz com o Deus descrito nesse livro.

            Não sou especialista em viagem no tempo, mas sei que existem duas teorias: a primeira é que o tempo é uma linha reta e se você voltar e mudar um evento no passado, modifica o futuro (como no filme De Volta para o Futuro). A segunda é que o tempo tem várias linhas. Se você voltar no tempo e mudar algo no passado, nada se modifica na sua linha temporal. Só criaria uma linha do tempo nova, um universo novo. Neste livro não dá para se saber qual é, mas suponho que seja a segunda, senão não faria sentido o acontecimento do final do romance. Acredito que o autor nem pensou nisso ao escrever o livro, pois o foco era a crítica que ele tinha com o Deus cristão, usando Caim como a pessoa que aponta isso para ele. Mas às vezes, é interessante analisar outros pontos.

            Há incongruências na história com relação a fala dos personagens, que é anacrônica. Mas o próprio narrador admite que isso é proposital, pois ele está traduzindo o diálogo para os dias atuais. Exemplo é Caim chamando um olheiro de bom samaritano sem ele próprio saber de onde vem essa expressão pois os samaritanos ainda não existiam e Deus dizendo a Josué que não podia parar o sol pois este já estava parado e quem se mexia era a Terra. Esta última achei engraçadinha.

            O que achei irritante e desnecessário foi o autor não seguir as regras gramaticais. Vários nomes estão em letra minúscula enquanto os diálogos não são separados por travessão nem por aspas e sim por vírgula e letra maiúscula no início da frase. Foi chato de me acostumar. Pelo que vi, esse é o estilo de José Saramago. Me pergunto com que intento ele teve ao escrever assim. Foi para ser diferentão? Independente do motivo, não gostei desse formato.

            De uma forma geral, gostei do livro. Com exceção do último capítulo e o desrespeito gramatical do autor, foi uma boa leitura. Obvio que aqueles que amam muito a Bíblia não gostarão nenhum pouco das mudanças feitas pelo escritor. Mas se você não se incomodar com isso ou com os pontos negativos que mencionei, vá lê-lo. Quem sabe não encontra com Caim em uma de suas perambulações no tempo?

 


sexta-feira, 18 de abril de 2025

Obras do Fradinho da Mão Furada


            Muito do folclore brasileiro foi inspirado nas crenças portuguesas, junto com as indígenas e africanas. Porém, nunca havia lido uma história que se baseasse em um ser folclórico de Portugal. Até agora... Obras do Fradinho da Mão Furada é um texto de autoria desconhecida, mas que foi atribuído ao escritor e dramaturgo António José da Silva, nascido no Brasil Colônia.

            André Peralta é um soldado pobre que arrumou uma casa abandonada como refúgio da chuva. Mas descobriu que ela não era tão abandonada assim, pois um demônio era o seu proprietário. Este tinha uma aparência horrenda e se vestia de frade apesar de sua natureza demoníaca. Ele era o Fradinho da Mão Furada, um dos servos de Lúcifer que faz pacto com os humanos. Este oferece um acordo com André Peralta. Será que o homem vai aceitar?

            O Fradinho da Mão Furada ou o Diabinho da Mão Furada, que pode ser considerado tanto o antagonista e guia do protagonista é baseado no ser do folclore português de mesmo nome. É dito que ele ajuda uma pessoa a encontrar riquezas, mas isso é apenas uma enganação para tentá-la e levar sua alma para o inferno. Também gosta de fazer travessuras o que me lembrou a figura do Saci, só que mais maligna. Aqui no livro, o personagem é bem fiel as descrições. Ele obriga o protagonista a aceitar sua companhia enquanto em sua jornada mostra lugares associados ao inferno, que a gente não sabe se é real ou apenas uma ilusão feita pelo diabinho, enquanto Peralta resiste firmemente as tentações, pois é um soldado honrado e leal a Deus.

            Falando nesses lugares, neles o protagonista se depara com figuras da mitologia greco-romana como Proserpina (Perséfone na mitologia grega), Eurídice, Cérbero e o Rei Midas. Também teve o rei Saul, figura bíblica que invejava os feitos de Davi. Houve também a personificação dos sete pecados capitais e palavras como a Cobiça, o Engano, a Mentira e a Verdade. Estas duas últimas me lembrou uma história: um dia, a Mentira engana a Verdade e rouba suas roupas e se passa por ela, enganando todo mundo. A Verdade apareceu para desmenti-la, mas como estava nua, todos ficaram chocados e ela desapareceu, envergonhada. Aqui no livro, a Verdade aparece nua e não sente vergonha enquanto a Mentira aparece bem adornada. O fradinho comenta que ninguém dá crédito aos sinceros e malvestidos. E toda mentira costuma ser bem detalhada e cresce ainda mais com o ego do mentiroso, por isso sua personificação é bem-vestida. Gostei dessa associação.

            Agora para os pontos negativos. Como a linguagem é do tempo do Brasil colonial, tinha coisas que achei difíceis de entender e isso dificultou um pouco a leitura do texto. Algo que não é bem um ponto negativo, mas sim algo curioso, é que quando Peralta esteve no inferno, várias pessoas estavam sendo punidas de acordo com suas profissões em vida. E lá, estavam os poetas sendo punidos por compararem obras humanas à divinas. Tenho a impressão de que o autor do texto, assim como Platão, não gostava muito dos poetas. Para mim, isso foi excessivo, mas cômico.

            Um assunto que acho interessante de destacar é a discussão entre o diabinho e Peralta em que o primeiro diz que a humanidade nem precisa de muita interferência dos demônios para serem maus. Enquanto o segundo diz que ainda assim, existem almas boas que se arrependem, como aconteceu com alguns dos fiéis santos de Deus. O fradinho replica que isso era antigamente e hoje não se tem essa esperança. E vocês? Acham que ainda há chance de uma pessoa má se arrepender e se redimir nos tempos atuais?

            De maneira geral, gostei da história. Espero que encontre outros livros que falem sobre figuras folclóricas de Portugal, pois quase não encontro. E se quiserem dar uma lida, podem vir. Só tomem cuidado para não encontrarem o Fradinho da Mão Furada. Se livrar dele vai ser difícil.