quarta-feira, 19 de abril de 2017

O unicórnio

                                                            Escultura de Luísa Siqueira 


Há muitos anos atrás, era difícil uma bruxa ou bruxo ganhar reconhecimento dos que não possuíam esses poderes maravilhosos. Mesmo tendo os ajudado em uma hora de necessidade. Foi assim com Gardênia, do reino de Aurea Silvarum. Ela ajudava a mãe a curar as pessoas usando plantas de variados tipos. Tudo ia bem, até os fofoqueiros da região suspeitarem da habilidade com que ela manejava as plantas. Certo dia, um deles  viu ela fazer uma planta crescer mais rápido que o normal. Ao contar a todos, os moradores se uniram, sem que ela pudesse se defender pois eram muitos, e a prenderam. Mesmo com a mãe tentando impedir, eles conseguiram levá-la para o palácio do rei para ser julgada. Prenderam suas mãos com placas de ferro para que ela não usasse sua habilidade.
            Todos a olhavam na corte. Um olhar de desprezo e medo. Implorou ao rei que a soltasse e que jamais fez ou faria algo contra o povo. Depois de algum tempo de silêncio, o rei finalmente se decidiu. Ele disse que ela deveria ir para a floresta procurar um unicórnio e voltar montada nele. Acreditava-se que os unicórnios só deixavam serem montados por aqueles que tinham um bom coração. Os guardas a levaram vendada e com as mãos ainda presas, até o meio da floresta. Retiraram a venda e saíram cavalgando, antes que Gardênia os pudesse seguir.  Mas ela conseguiu ouvir, em meio a risadas:
            - Ela vai morrer. Os unicórnios desapareceram há anos atrás.
            - Se é que já existiu algum para começar.
            A moça já sabia disso. Ficou andando pela floresta sem rumo pensando com raiva: Ingratos! Ajudo a curar suas feridas e é assim que me agradecem?! Se eu pudesse... Ela ouviu um ruído alto de algo pisando nas folhas secas. Se escondeu atrás de uma árvore, mas o som não parecia vir em sua direção. Ao invés disso, parecia se fixar em sua frente. Continuou a andar, sendo mais cautelosa dessa vez. Então ela viu a frente uma bela égua branca e marrom, se movimentando desesperadamente. Uma de suas patas traseiras estava presa em uma planta, que parecia querer agarrá-la. Gardênia conhecia essa planta, ela prendia sua vítima até que o bicho morresse de fome e então se alimentava de seus restos.
            Sentindo pena do animal, Gardênia foi até lá e bateu na planta com suas mãos ainda presas. Como a planta só conseguia pegar uma presa por vez e era incapaz de soltar a que já havia prendido, ela não pode se defender, sendo dividida em dois pedaços e soltando o equino. Ela só se recuperaria daqui a um dia. A égua então se acalmou e olhou para Gardênia. Ela tinha olhos azuis, algo raro para um cavalo. Ela olhou para o ferro nas mãos de Gardênia, que ainda estava sentada no chão. O animal colocou as patas dianteiras para cima e começou a pisotear o ferro para que ele quebrasse. Gardênia a agradeceu acariciando o seu focinho. Você é mansinha e tem belos olhos azuis. Pena que você não é um unicórnio. Mas pode ser!
            Com a ideia que teve, Gardênia começou a colher várias flores roxas que via no caminho e começou a amassá-las, fazendo uma tintura roxa e pintando a égua dessa cor, incluindo sua cauda e sua crina. Demorou dois dias inteiros para fazer isso, tentando parecer o mais convincente possível e dando algumas pausas para comer frutinhas. Quando acabou, fez o espinho de uma planta crescer em um tamanho anormal e o prendeu no topo da cabeça da égua com plantinhas floridas. No dia seguinte, subiu em uma árvore e a fez crescer para localizar o caminho para sua aldeia. Após isso, subiu no equino e seguiu seu rumo.
            Chegando de manhã montada em um unicórnio, atraiu muita gente para perto dela. As mesmas pessoas que a haviam prendido e chamado de bruxa, naquele momento estavam elogiando-a e a paparicando. A mãe foi chamada. Ela quase que foi na floresta procurar sua filha, mas os guardas a impediram e a prenderam. A preocupada mulher foi solta e pôde dar um abraço na sua filha. Gardênia foi mandada ao palácio do rei.
            O rei ficou surpreso com a revelação, tanto que quando falou a palavra unicórnio, sua filha que estava do outro lado da construção foi correndo para a sala do trono. Como toda a garotinha de seis anos daquele reino, a princesa adorava animais, principalmente os unicórnios que via em figuras de seus livros. Ela quis muito tocar no animal, e como não podia recusar o pedido de uma princesa, Gardênia deixou fazê-lo. Por sorte, a tinta que tinha feito havia secado, e não sairia a menos que a égua fosse lavada. Com pressa de sair dali, Gardênia disse em tom respeitoso:
            - Agradeço a vossa majestade por ter nos recebido em seu maravilhoso palácio, mas temos que ir.
            - Espere! – disse a princesa. – Eu quero o unicórnio para mim.
            - Sinto muito, vossa alteza, mas o unicórnio me escolheu como sua companheira leal. Ele não ficará em nenhum lugar sem mim.
            - Então, você pode morar com a gente, não é papai?
            - É sim minha querida. – disse o rei, que amava tanto a sua filha, que nunca recusava dela um pedido.
            - Sinto-lhes dizer que eu e o unicórnio prometemos um ao outro que... Iríamos percorrer o mundo e tentar curar aqueles que precisam. – respondeu Gardênia, já ficando nervosa. – E os senhores entendem como é fazer uma promessa para um ser tão puro. Não é bom quebrá-la.
            - Ah. Mas antes de ir embora, podemos ver seus poderes?
            - Creio que isso a senhorita não poderia recusar, pois eu também estou curioso para ver os poderes de um unicórnio. Serei o primeiro rei a vê-los pessoalmente.
            As pessoas da corte começaram a cochichar entre si, fazendo bastante barulho. O rei bateu as palmas. Um servo foi para perto dele e o rei falou algo em seu ouvido que por causa dos vários sons do salão, Gardênia não teve nem a chance de tentar ouvir o que ele estava falando. Gardênia estava com um mau pressentimento. O servo voltou com uma pequena estátua, partida em dois e colocou perto do unicórnio:
            - Por favor, magnífica criatura, reconstitua a forma original que esta estátua já foi. – disse o rei.
            É dito nos antigos livros que os unicórnios eram capazes de consertar ou tornar algo como era antes. O rei vai mandar a égua fazer tudo o que está escrito no livro. Droga! A égua cheirou a estátua, quase que encostando o falso chifre. A moça teve uma ideia. Como Gardênia estava montada nela, aproveitou esta oportunidade para usar as plantas que estavam prendendo o espinho na cabeça do equino para ficar mais comprida, só que em um tamanho minúsculo que ninguém pudesse ver e sem ninguém ver os movimentos que fazia com sua mão enquanto acariciava o pescoço do animal. A planta passou pelo espinho até a estátua e penetrou, com força, por dentro da estátua, fazendo como se fosse uma costura, juntando as duas metades em uma só.
            Ao ver a estátua novinha em folha, a princesa aplaudiu alegre, como se tivesse visto um esplêndido show. O rei e a corte também aplaudiram alegres. O servo com cuidado, retirou a estátua:
            - Muito bom! – disse o rei alegre. – Muito bom mesmo! Agora a próxima habilidade.
            O rei bateu palmas e o servo veio até ele. Novamente cochichou algo que Gardênia não pôde ouvir e o homem se retirou. Algum tempo depois, ele voltou trazendo um cachorro magro, parecendo que mal conseguia ficar de pé sem ajuda. O servo o colocou perto do unicórnio:
            - Este é Tiberius, meu cão de caça favorito. Por algum motivo, ele não come há dias. Chamei vários veterinários, mas nenhum conseguiu curá-lo. Espero que este ser magnífico possa fazer este favor para um dono bastante preocupado.
            Gardênia sabia o mal que ele tinha. E sabia sua origem. O rei era bastante corajoso e ia caçar em lugares em que ninguém ousava pôr os pés, e um deles era o Pântano Lacrimoso, onde havia muitas larvas de parasitas na água. Ela sabia disso pois ela e a mãe já viajaram para aquele local em busca de ervas. O cachorro deve ter ingerido esta água quando estava com sede. O parasita deve ter crescido e está sugando os nutrientes do seu corpo. Ela então soube o que fazer. Aproveitando que a égua abaixou sua cabeça novamente, ela usou o seu poder. Do mesmo jeito que na primeira vez, acariciou o pescoço da égua e a planta minúscula ficou mais comprida, passando do espinho para a boca do cachorro, que estava com a língua para fora. Passou pela garganta até achar algo que se movia no estômago de Tiberius. A planta se enrolou no verme e o matou. Depois, fez a planta crescer lá dentro, enchendo a barriga do animal. Ele levantou e correu para o rei, latindo e abanando a cauda de alegria.
            Todos bateram palmas. O rei muito feliz abraçou o seu cachorro. A princesa também, até finalmente dizer:
            - Não sabe o quanto eu sou grato por isso. Agora, vamos ao meu último pedido.
            Gardênia estava nervosa, mas um pouco aliviada de ser a última coisa que teria que fazer para sair dali. Ao invés de bater palmas para chamar o servo, o rei assobiou. Para o seu lado, veio um cavaleiro da guarda real. Ele cochichou em seu ouvido. O homem então tirou sua espada e foi chegando perto do unicórnio devagar:
            - O que o senhor vai fazer?!
            - Como último pedido, quero o chifre mágico do unicórnio. Li que ele funciona mesmo após ser removido.
            - Vossa majestade não poderia fazer isso com uma criatura tão pura.
            - Não se preocupe. Vai crescer de novo.
            Com medo de sua farsa ser descoberta, Gardênia puxou de leve a crina da égua para ela virar, mas outros soldados estavam a encurralando. Não tinha escapatória. Antes que pudesse usar sua magia de fazer crescer vegetais, o soldado da frente fez um movimento rápido com a espada e cortou o falso chifre. Por sorte, a égua estava assustada, mas não foi ferida. O guarda pegou e olhou o espinho com atenção. Até que gritou:
            - Vossa majestade foi enganada! Isso não passa de um espinho gigante.
             A corte começou a cochichar, chocada. O rei e sua filha se levantaram e chegaram perto do guarda segurando o espinho. O rei o pegou e sentiu sua textura e via pequenas plantas que estavam embaixo dele:
            - Enganadora de araque. Prendam essa bruxa!
            - Enganadora ou não, eu consertei sua estátua e curei o seu cachorro. O mínimo que o senhor podia fazer é me deixar ir embora! – disse Gardênia, já exausta com a situação.
            Enquanto os guardas tiravam Gardênia de cima da égua, a princesinha não estava entendo direito o que estava acontecendo. Ela decidiu acariciar a égua na cabeça. Sentiu algo e depois gritou:
            - Está tudo bem! O chifre dela está nascendo de novo!
            Os guardas pararam e o rei olhou para a cabeça do equino. Viu uma ponta branca e brilhante em sua cabeça.


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