terça-feira, 24 de janeiro de 2017

NARRAR

      Era uma vez.  É assim que começa todo o conto de fadas.  Mas, neste conto não haverá nenhuma fada, por isso vamos começar outra vez.
   Num lugar cheio de mato, havia um bar bastante conhecido pelos moradores dos arredores chamado “Maçã Envenenada”.  Havia toda a espécie de frequentadores: desde princesas renomáveis até trolls que viviam debaixo das pontes.  Porém, não ficarei com nenhum deles.  A história focar-se-á em três figuras distintas.  A primeira era de um homem velho e gordo, com barba grande e branca, vestido de vermelho.  Não, senhoras e senhores, não é o Papai Noel.  A segunda era de uma mulher que aparentava ter quarenta e poucos anos (só aparentava mesmo).  A terceira era de um jovem de dezoito anos.  O velho iniciou:
      - Hoje estamos reunidos aqui para passar o conhecimento da NARRAR para este jovem.  E...
      - Não precisa fazer este discurso, Itamar. – disse a mulher, impaciente. – Estamos só nós três aqui.
       - Está bem, Joana.  Como você sugere que comecemos esta reunião?
       - Deixe o garoto fazer as perguntas.
       - Muito bem.  Pode começar, rapaz.
       - Bem...- iniciou, nervoso. – Meu nome é Inácio e estudo para ser narrador.  Depois de uma longa pausa: - Como é o trabalho de vocês?
        - Complicado – respondeu o velho, coçando a barba. – A primeira coisa que você precisa saber é ler bem o texto, de preferência com uma voz grave e pausada.
       - Não necessariamente. – interrompeu Joana, aparentando ficar mais fora de si com a bebida. – Eu sou mulher e só homem tem essa voz grossa que você disse.
      - Ah, cala a boca, Joana!  Você tem a voz tão grossa que até te confundem com um narrador macho.
       - Velho imbecil!  Está dizendo que minha voz é de homem?  Sou cem por cento mulher e tem muita mulher que narra conto de fadas.
         - Raríssimas exceções.
         - Raríssimas coisíssima nenhuma.  Têm mais contadoras de história do que contadores.
         - Elas não contam.
         - Contam sim!
         - Deixe eu continuar.  A segunda coisa é saber mentir.
         - Como assim?
     - Você acha que tudo que é narrado é cem por cento verdade? – pergunta Joana, em tom debochado. – Como você explica que a madrasta da Branca de Neve tem um bar de grande sucesso se era para ela estar morta?
        - E não está?
        - Claro que não.  Ela não era burra de aceitar o convite do Príncipe Encantado.  Desconfiava que era uma armadilha e então fugiu.  Montou seu barzinho onde trabalha fingindo ser uma bruxa qualquer.
          - Isso é sério?
       - Se é.  E sabe esse príncipe encantado que mencionei?  Ele devia ser chamado de Príncipe Galanteador, isso sim, pois casara-se também com a Bela Adormecida e a Cinderela, todas na mesma época.  Depois que elas descobriram, contrataram até uma bruxa para transformá-lo em sapo.
          - E o que aconteceu depois?
          - Ele encontrou uma outra princesa e então...
          - Basta de fofoca! – interrompeu Itamar, irritado. – Vamos prosseguir com as perguntas.
      - O senhor disse que é preciso saber ler e mentir.  Mas como o narrador é tratado pelas personagens?
        Como se fosse uma barata. – resmungou Joana, antes que Itamar abrisse a boca. – A gente é tratada pior que as empregadas das rainhas más.  Quando eu estava narrando a história de Chapeuzinho Vermelho, o abusado do lobo quis que eu cortasse a parte em que o caçador coloca pedras em sua barriga para que tivesse uma prisão de ventre dolorosa.  Ele falou que aquilo seria mais humilhante do que morrer.  E, como ele é uma personagem, o autor deu privilégio para ele.
          - O lobo mau não foi morto pelo caçador?  Mas como...
          - Ele não chegou nem a comer a vovozinha.  Para falar a verdade, nem lobo ele é.  O nome dele é Augusto J. Lobo. O atual marido da Chapeuzinho Vermelho.
           - Então o que realmente aconteceu?
          - Ele e a Chapeuzinho namoravam às escondidas porque seus pais não aprovavam o namoro.  Uma noite, ele decidiu visitar a Chapeuzinho em seu quarto.  Mas acabou se enganando de janela e foi parar no quarto da avó dela.  A velha tomou um susto e gritou pelo vizinho, que era um caçador, para matar o tarado.  No entanto, antes que o vizinho desse o primeiro tiro, Chapeuzinho que estava no quarto de cima, o impediu e explicou a situação.
            - Quantos anos ela tinha?
            - Treze.  E seu namorado, quinze.  De ingênua essa menina não tinha nada.
            - Será que eu posso falar agora ou está difícil? – vociferou Itamar.
            - Está, pode falar, seu estraga-prazer.
          - Bom, como Joana havia mencionado, não usufruímos de um tratamento equivalente ao das personagens.
            - Ou dos narradores-personagens.
            - Joana, deixa eu prosseguir.  Como somos narradores oniscientes não temos tanta importância assim.
            - E se houvesse uma lista de todos os seres que apareceram em uma história, teria até árvore, mas não a gente.  Acredita que ninguém sabe os nossos nomes?  Uma vez a Cachinhos Dourados...
            - Chega, mulher!  Está atrapalhando toda a entrevista.  Pare de enrolação e responda as perguntas objetivamente.
            - Enrolação?  Ora, meu querido, estou mostrando a esse rapaz o que um narrador faz.  E você aí todo metido a sabe-tudo e nem contou uma história que preste.
            - Está bêbada!  Vá para casa tomar banho.
            - Que foi Itamar?  - disse Joana, dando uma risadinha.  – Está com inveja que eu sou melhor que você em contar histórias?  Tadinho.  Por que não chamamos o seu primo Noel para dar um presentinho para você?
           - Já disse para você que o Noel não é meu primo.
           - Tá, tá, que seja.  Posso voltar à minha história agora?
           - Continue.  Não estou mais nem ligando.
           Dito isto, Itamar se pôs a comer os salgadinhos da mesa, impaciente.  Joana continuou:
         - Então, no conto dos “Três Ursos”, eu decidi dar o meu nome e minha opinião sobre a história.  Acredita que a Cachinhos me mandou uma carta dizendo para eu cortar isso, que era algo desnecessário para o enredo.  Ela é uma cara-de-pau!  Eu minto o conto todo em favor dela e é assim que ela me agradece?
         - A senhora está dizendo que este conto que conhecemos desde criança é pura mentira?
      - Pura, não.  Ela realmente entrou na casa enquanto os ursos estavam fora.  Mas não apenas mexericou em suas coisas.  Ela também roubou as esmeraldas da Mamãe Urso.
         - Roubou?
    - Cachinhos Dourados é conhecida pela polícia das fadas como Cachos de Ouro, ladra internacionalmente procurada.  Em todo canto que ela rouba, ela deixa um pedacinho de cacho louro de uma boneca como assinatura de seu crime.  A única vez que ela foi vista foi quando os três ursos chegaram em casa.  Mas ela fugiu tão rápido que só visualizaram suas costas e seus cabelos louros cacheados.  Seu rosto nunca foi identificado.
         - Gostei dessa versão.  Preferi essa do que a original.
          - Sério?  Bom, tem muito de onde esta surgiu.  Se quiser conhecer mais sobre as personagens, é só procurar a Joaninha aqui.
          - Que de joaninha não tem nada. – disse Itamar, com desdém.
          - Ah, me deixa!
         - Se quiser me procurar para tirar mais dúvidas sobre a arte de narrar, é só me ligar.  Boa sorte, rapaz.  A reunião da NARRAR está encerrada por hoje.
          Os três se despediram e cada um seguiu seu caminho. 
          Então, caro leitor, te deixei amarrado na história?  Se você leu até este ponto, o mais provável é que sim.  Esta é a primeira vez que narro um conto.  Espero que tenha gostado e que em breve, veja mais das minhas narrativas.  Até mais.


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