Em algum lugar
desconhecido pela maioria, o Pai Tempo e a Mãe Natureza tiveram quatro filhos
chamados Verão, Outono, Inverno e Primavera. Os quatro ficaram encarregados de
modificar o clima e o ambiente, cada um tendo três meses para si. Verão era o
mais esquentado dos quatro, e consigo trazia o sol quente para onde quer que
fosse. Outono vinha logo depois. Deixava as folhas amareladas ou avermelhadas
por onde passava e era tão preguiçoso que nem colhia as folhas que deixava
cair. Inverno era tão frio quanto a temperatura que deixava ao passar. E por
último Primavera, a única menina, era a mais alegre e adorava enfeitar o mundo
com flores além de ser uma ótima casamenteira.
Os
quatro irmãos continuavam vivendo na mesma casa, mas raramente se encontravam
os quatro de uma vez. Normalmente, quando Verão estava trabalhando em um lugar,
Inverno estava em outro e ficavam Outono e Primavera dividindo a mesma casa e
vice e versa. Mas havia uma grande rivalidade entre Verão e Inverno, que
competiam por território. Entre o Trópico de Câncer e o de Capricórnio, Verão
era o que mais dominava, não podendo nem nevar nessas regiões. Na parte de cima
do de Câncer e de baixo do de Capricórnio, era o Inverno que mais controlava, e
no momento em que Verão ia para esses lugares, nunca conseguia os esquentar
bastante. Os outros dois nunca foram tão aguerridos, sendo Outono preguiçoso
demais para se esforçar em uma disputa e Primavera não gostando desse tipo de
coisa.
Nesse
tipo de competição, os que mais sofriam eram os mortais que, ou ficavam
morrendo de calor ou morrendo de frio dependendo da data e da região. Tinha
vezes que eles exageravam e ficavam mais tempo do que deveriam, atrasando
Outono e Primavera. Porém, em um ano eles passaram dos limites e ficaram quase
três meses a mais do que deveriam. E é desse ano que eu vou contar. Ceci era
uma jovem que morava na região governada pelo Verão. Com os meses a mais que
ele permaneceu ali, as águas secavam, os animais e plantas morriam de sede e
calor, e isso incluía até as pessoas, como sua mãe, que estava muito doente com
a falta de água. Seu pai havia viajado a trabalho, prometendo voltar após o
Verão ir embora. Mas não só ele não foi embora, como o pai, mesmo querendo
muito, não conseguia voltar pois o lugar onde trabalhava era o reino do
Inverno, que prendia as casas com a grande quantidade de neve e matava as
pessoas de frio.
Ceci
resolveu então tirar satisfação com o Outono e a Primavera, e o único jeito de
encontrá-los era em sua casa, que ficava em algum lugar nas nuvens. Sabia que a
única ponte que ligava os dois mundos era por uma tromba d’água mágica, que
ninguém nunca encontrou. Mesmo assim, estava determinada a procurá-la de
qualquer jeito. Pediu a um amigo para tomar conta da mãe, arrumou um pequeno
barco e uns poucos suprimentos para a viagem e seguiu para o oceano.
Por
vários dias ela viajou, e nada de encontrar a tromba d’água. Nem ao menos
enfrentou tempestades. O oceano estava tão calmo e quente que Ceci pressupôs
que o Verão também dominava essa área. Aquelas águas eram tão grandes e Ceci
era tão inexperiente em navegação que se perdeu. Sem água potável e com apenas
os peixes pescados como alimento, Ceci começou a desistir da viagem. Para
chamar a atenção de possíveis navegadores, ela começou a tocar sua flauta, que
trouxera para se distrair na longa viagem. Tocando por alguns minutos, sentiu
algo forte se movimentando na água. Por
favor, não seja um tubarão. Pensou a moça. Não era um tubarão. Sua
aparência lembrava a de uma moça, mas o seu corpo era todo feito de água. Ela
encostou os seus braços no barco e disse:
-
Foi você que tocou esse som fino e delicado?
-
Sim. – respondeu Ceci, mostrando a ela sua flauta. – Quem é você?
-
Sou Yara, filha de Nereu. Cuido desses oceanos com minhas irmãs. Nunca havia
ouvido um som como esse. Pode tocar para mim, por favor?
Não
querendo recusar o pedido de uma divindade, Ceci tocou mais uma vez sua
composição predileta. A nereida se encantou tanto que começou a cantar conforme
a música, dando um dos momentos mais belos da vida de Ceci. Acabando a música,
Yara voltou a dizer:
-
Adorei esta melodia. Poderia cantá-la o dia inteiro. Mas o que faz aqui no meio
do oceano?
-
Estava à procura da tromba d’água que me levaria para a casa das estações. Mas
me perdi e estou acabando por desistir.
-
Meu amado Horus vem me visitar daqui a pouco. Só podemos nos ver uma vez por
ano. Você pode tocar esse magnífico instrumento para nós?
-
Mas...
-
Por favor... Prometo que você será recompensada.
Não
deu tempo nem de Ceci responder, pois sentiu um forte vento se aproximando.
Conseguiu ver que ele tinha uma forma similar à de um homem:
-
Por favor. Toque para nós.
Ceci
tocou a flauta novamente. Horus pegou Yara pelos braços e os dois começaram a
dançar. Dançavam em círculos, juntando os seus elementos em forma de uma tromba
d’água, levando o barco de Ceci para cima. Ela estava apavorada, mas continuou
tocando até chegar às nuvens, onde seu pequeno barco encalhou:
-
Obrigado por esta magnífica melodia. – agradeceu Horus. – Se precisar de mim,
toque novamente estas mesmas notas. Aparecerei voando.
A tromba d’água desapareceu sem que Ceci
pudesse agradecer a ajuda. A jovem prosseguiu a pé, levando sua flauta consigo.
Não demorou muito para ela ver uma casa, simples mas bela, com uma vegetação
interessante. Algumas árvores estavam com suas folhas amareladas e alaranjadas,
enquanto outras estavam verdes e mais outras estava sem nenhuma folha e ainda
por cima cobertas de neve, apesar de Ceci não sentir nenhum frio ou algo gelado
caindo. O gramado era lindo e coberto de flores de coloração rosa. Ceci se
aproximou da porta e bateu.
-
Verão e Inverno, finalmente vocês voltaram. Não estava mais aguentando ficar
aqui sem fazer na... Espere, quem é você?!
Uma
bela moça havia atendido a porta. Ela tinha cabelo verde com flores que
pareciam brotar dele. Um rapaz de cabelo desgrenhado vermelho alaranjado foi
para o lado da moça esquisita, dando um enorme bocejo:
-
Me chamo Ceci e vim pedir ajuda aos senhores.
-
Senhores? Por favor querida, não nos chame assim. Eu tenho mais de um milhão de
anos, mas acredite, ainda estou na FLOR da idade. Ha ha ha, essa foi muito boa,
admita.
-
O que você veio nos pedir? – perguntou Outono, ignorando a irmã.
-
Vim pedir para que vocês voltem para a Terra e retomem aos seus trabalhos, por favor.
Minha casa não tem mais água e o meu pai não consegue mais voltar por causa da
neve.
-
Bem que a gente gostaria. Até eu estou entediado de ficar aqui. Mas nossos
irmãos se recusam a parar de competir e não somos fortes o bastante para
tirá-los.
-
Mas como? Das outras vezes vocês conseguiam.
-
Eles não estavam tão fortes antes. E apesar de às vezes eles passarem alguns
dias do prazo, eles sempre voltavam e nos deixavam fazer o nosso trabalho.
-
E por que vocês não vão lá e falam para eles que acabou o tempo deles?
-
Eu já tentei fazer isso. – respondeu Primavera. – Mas o Inverno me deu aquele
olhar gelado que congelou até o meu cabelo.
-
Depois da tentativa fracassada dela, resolvi nem tentar. Verão é muito
esquentado e podia colocar fogo no meu traseiro.
-
Mas não podemos fazer nada? Meu país está um inferno de tão quente e o lugar
onde meu pai está, tudo congelado. Se continuar assim, tudo irá morrer.
-
Eu entendo. Mas somos muito fracos para lutar com eles. Eles são o muito frio e
o muito quente. Eu sou o meio frio e ela o meio quente, resumindo, eles são
melhores e chamam mais atenção que a gente.
-
Diz isso só por você. Eu sou conhecida como a estação das flores, do amor e da
beleza. Você é que é apenas as estações que as folhas caem. Nada de tão importante.
-
Conhecida?! Só se for na área que o Inverno domina. Pois na terra do Verão,
você quase não aparece. Já ouvi até as pessoas perguntando se você até existe.
É a segunda estação mais perguntada depois do Inverno.
-
Todos vocês são importantes. – disse Ceci, querendo evitar que os dois
brigassem. – Mas precisam seguir de acordo com o que foi estabelecido para
vocês. E só porque vocês são “meio” alguma coisa, não significa que sejam
fracos.
-
Então, o que você sugere que nós façamos? As plantas de todos os lugares estão
praticamente mortas. Não conseguiremos recuperá-las a tempo.
-
Sozinhos não. Mas já pensaram em se juntarem?
Os
dois ficaram calados. Olharam um para o outro e depois olharam para a humana
com curiosidade:
-
Vocês são o “meio” frio e o “meio” calor. Se vocês se juntarem, formarão a
temperatura ideal.
Os
dois se olharam novamente. Primavera afirmou com a cabeça e disse:
-
É, acho que podemos tentar. Mas sugiro que você ponha um cachecol, pois vamos
para a terra do Inverno primeiro.
Outono
não contrariou a irmã dessa vez, já que se o fizesse, a discussão não
terminaria, e achava isso muito problemático. Ceci não tinha um cachecol. Ela
tinha apenas um casaco leve que trouxera na viagem. Primavera teve que
emprestar os seus. Eles foram até o local gelado por meio de uma carruagem
movida pelo vento. Quando chegaram, Primavera começou a encostar nas árvores, e
falou tristemente:
-
Ainda estão adormecidas.
-
As árvores.
-
E também as hamadríades, ninfas das árvores. Espero que as antusas estejam bem.
-
Antu o que?
-
Antusas, as ninfas das flores. Elas costumavam me ajudar na hora de crescer e
florescer a vegetação.
-
Então, todo esse tempo você tinha ajuda? Eu faço tudo sozinho.
-
O seu trabalho é só fazer as folhas caírem. É bem mais fácil do que fazer as
coisas nascerem.
-
Olha aqui, se você acha fácil fazer isso, então...
-
Como se acorda elas? – perguntou Ceci, tentando evitar que os dois irmãos
discutissem.
-
Normalmente, eu só esquentava um pouco as coisas e elas despertavam. Mas dessa
vez está mais frio que o normal.
-
Tentem vocês dois se juntarem para fazerem o clima ideal. Talvez funcione.
Os
dois se deram as mãos com um certo receio e fecharam os olhos. Ceci sentiu o
frio diminuir e a neve derreter aos poucos. Os animais, que estavam se
escondendo do frio começaram a dar um sinal de vida na parte afetada. Mas nada
das hamadríades e antusas aparecerem:
-
Elas devem estar com preguiça de levantar. – disse Primavera. – Eu costumava
cantar alguma música para acordá-las, mas estou fazendo um esforço maior do que
o normal agora.
Ceci
aproveitou que não sentia mais frio e tirou o seu agasalho. Pegou sua flauta e
começou a tocar uma melodia bem alegre. Isso deixou os espíritos das árvores
curiosos e logo se levantaram. Quando se viram na presença de sua chefe, foram
logo ajudando e espalhando sementes, além de acordarem as antusas para também
ajudarem. Logo, a colônia do Inverno estava toda florida e quente. Isso fez com
que o próprio aparecesse para entender o que estava acontecendo. Seu cabelo e
sua pele eram brancos como os flocos de neve que caíam do céu, mas tinha uma
aparência jovem como a dos irmãos:
-
O que estão fazendo? – perguntou ele em tom zangado, mas mantendo a calma, -
Isto está arruinando minha jogada contra o Verão.
-
E você e sua neve estão matando todo mundo de frio. – falou Primavera, também
zangada. – Você sabe que é a minha vez de tomar conta daqui e mesmo assim me
obrigou a sair. Você não irá fazer mais isso.
As
hamadríades e antusas o encaram, demonstrando descontentamento no rosto:
-
Eu e Outono vamos para as terras do Verão e mandá-lo para casa. Enquanto isso,
você esperará por ele lá em casa. Minhas servas ficarão de olho caso você
retorne aqui. De agora em diante, siga o que foi combinado.
-
Ai, que ótimo. Por causa de vocês, eu perdi a competição. É bom que vocês
expulsem logo o Verão. Não quero que ele fique se gabando por muito tempo.
-
Então porque você não vem com a gente tirá-lo de lá? – perguntou Ceci.
-
O território dele é muito quente. Eu derreteria lá.
Dizendo
isso, ele pegou sua própria carruagem e desapareceu nas nuvens. Primavera
deixou uma das hamadríades no comando enquanto estivesse fora e partiu com Ceci
e Outono para o país da humana. Ela queria ter aproveitado para ver o pai
enquanto estavam na colônia do Inverno, porém a situação de seu país era
urgente. Ao chegarem no destino, Outono olhou para as árvores secas e peladas
irônico:
-
Bem, meu trabalho já está feito. Todas as folhas caíram. Vamos embora.
-
Engraçadinho. – disse Primavera. – Nem pense em escapar do trabalho. Vamos
resolver isso de uma vez.
Os
dois deram as mãos. Porém, quando iam começar a usar seus poderes, apareceu um
rapaz. Ceci nunca havia visto ele em sua cidade. Era ruivo, com o cabelo que
parecia se mexer como o fogo e tinha pele bem bronzeada:
-
Curupira? – perguntou Ceci bem baixinho.
Apesar
de ela ter perguntado em um tom de voz baixo e de maneira retórica, o garoto
respondeu, zangado:
-
Curupira coisa nenhuma! Sou o senhor dessas terras. Sou o magnífico Verão. E
vim saber o que os meus irmãos fazem aqui.
-
Viemos reivindicar nossa posição que você e Inverno roubaram de nós. – disse
Primavera. – Vocês ficaram por tempo demais.
-
Que droga! Vocês sempre querem estragar nossa competição. Procurem algo para
vocês fazerem até que um de nós perca.
-
Mas quanto mais você ficar aqui, mais gente morrerá de sede e de calor. – falou
Ceci. – O senhor não se importa conosco?
-
Eu? Me importar com os humanos? Por que eu me importaria com seres que olham
apenas para o próprio umbigo, não se importando com ninguém mais a não ser eles
mesmos?
-
Odeio contrariar a vossa senhoria, mas se os humanos fossem tão egoístas como
diz, por que esta aqui foi procurar a gente por dias para salvar o pai que
estava morrendo de frio e o povo dela que está aqui passando calor? – perguntou
Outono, irônico.
-
Ainda assim estava pensando em si mesma. Pois ela também está morrendo de
calor. Mas isso pouco me importa. Saiam daqui.
-
Já expulsamos o Inverno. Agora é a sua vez. – disse Primavera.
-
Expulsaram o inverno?
-
Sim. Não faz mais sentido você ficar aqui. Você tecnicamente já ganhou.
-
Mas não de uma forma justa. Ganhava quem conseguisse ficar mais tempo cuidando
de suas terras sem ficar entediado e voltar para casa. E então vocês interromperam.
Não vou deixar que façam o mesmo comigo.
Outono
e Primavera usaram juntos os seus poderes. Verão contra-atacou com o seu. Houve
um certo equilíbrio no começo do combate, mas como Verão estava na vantagem
pela sua dominância do território, ele começou aos poucos ultrapassar Outono e
Primavera. Se não fizermos mais alguma
coisa, vamos perder. Pensou Ceci. Então, ela se lembrou do que Horus havia
lhe dito: “Se precisar de mim, toque novamente estas mesmas notas. Aparecerei
voando”.
Ceci
tocou a sua flauta, tocando o mesmo ritmo que havia tocado para o casal
místico. Sentiu um vento vindo em sua direção. Era Horus:
-
Por favor, nos ajude a combater o Verão.
Não
houve outra. Horus se juntou ao Outono e a Primavera e começou a soprar. Seu
sopro era forte, e juntando com a força das duas estações, fez o Verão voar
para as nuvens. As árvores começaram a ficar mais saudáveis com a chuva que
Outono trouxe, fazendo suas folhas crescerem e caírem novamente. Com tudo
resolvido, Primavera voltou para seu trabalho, deixando Outono no país de Ceci
e prometendo voltar quando fosse o momento certo. Horus acabou por virar o novo
colaborador do Outono, ajudando-o em relação às folhas. Uma semana depois, o
pai de Ceci voltou para casa e sua mãe foi melhorando aos poucos. Tudo voltou
ao normal. Verão e Inverno, porém, continuaram competindo. Quem tivesse mais
vitórias no xadrez seria o melhor.