sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Não perca a cabeça


        Para comemorar o Halloween, decidi fazer a resenha de uma história de terror. A lenda do cavaleiro sem cabeça é um conto escrito pelo americano Washington Irving, lançado em 1820 como parte da coletânea Os Esboços de Geoffrey Crayon.

            Icabode Crane foi enviado para ser professor na pequena cidade de Greensburgh, conhecida pela presença de várias figuras apavorantes, inclusive a do famoso Cavaleiro Sem Cabeça. Ao ver as riquezas de uma de suas discípulas musicais, Katrina Van Tassel, ele tenta persuadir a jovem a se casar com ele. Para seu azar, Brom Bones, o rapaz mais forte e encrenqueiro do local, também tem interesse na moça.

            Apesar do conto ter sido feito por um americano, a figura do cavaleiro sem cabeça já é conhecida no folclore alemão, servindo como inspiração para o monstro que aparece na obra. Algo cômico de se pensar que um dos primeiros contos americanos se utilizou de um monstro estrangeiro. Além disso, a história se passa em um local cuja descendência era holandesa e não inglesa.

            Quanto aos personagens, por ser um conto, são poucos que têm real significância. A pessoa que tem suas características mais detalhadas é com certeza Icabode, que por ser o “herói” da história, faz sentido. Mas falamos dele depois. Seu interesse romântico, Katrina, só sabemos um pouco de sua aparência. Até mesmo sua casa é mais detalhada que a própria moça. Ela só serve como uma ferramenta para a história. Já o rival, Brom Bones, é descrito como o completo oposto de Icabode, não só pela aparência forte, mas também pela personalidade maliciosa, sem medo, apesar da pouca educação.

            Falemos do protagonista. Icabode está longe de ser um herói romântico. O “amor” que ele tem por Katrina é mais pelo fato da grande herança que ela receberá do pai. Talvez seja por isso que o narrador descreve muito pouco a moça, pois Icabode estava ocupado demais olhando os detalhes de sua fazenda, que poderia se tornar dele se ele a conquistasse. Além disso, ele é guloso, indo a casa de seus alunos para comer algo de bom. Também é supersticioso, e acreditava em todas as lendas que o povo contava, algo contraditório para um professor. Bem provável que o autor o fez assim para que não tenhamos pena do que aconteceu com ele depois.

            O icônico Cavaleiro infelizmente só aparece nos momentos finais do livro. Mas o narrador especula suas origens no início do conto. Enquanto se ele existe ou não, fica no ar, pois o livro te dá a possibilidade tanto de um final realista quanto o de um sobrenatural.

            Lembro que quando era bem pequena, assisti uma adaptação deste livro em desenho. Ela foi feita pela Disney em 1949, época em que a empresa não tinha medo de traumatizar crianças com figuras assustadoras*.

            Foi uma boa leitura. Gostaria que tivesse mais momentos com o Cavaleiro Sem Cabeça e mais desenvolvimento dos outros personagens, mas me contento com o que foi apresentado. Por ser uma história antiga, há algumas coisas que hoje em dia seriam inaceitáveis, como castigar alunos com uma vara e escravidão. Porém, nada disso tem foco ou afeta o conto. Por isso, não percam a cabeça.

 

*Link para a primeira parte do desenho: https://www.youtube.com/watch?v=t-6g_MxiDqI

 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

A Penelopíada


              Já vi o ponto de vista da amante. Por que não o da esposa? A Odisseia de Penélope foi escrita por Margaret Atwood, mesma autora de O Conto da Aia, no ano de 2005. Apesar deste último ter ficado famoso devido a série de tv, nunca assisti ou li O Conto da Aia. Sendo assim, A Odisseia de Penélope é o primeiro livro que leio desta autora. Então, sua fama não irá me influenciar.

            Agora que está morta e cansada de ser vista como o exemplo da “mulher perfeita e leal”, Penélope decide contar a sua versão da história, esperando que alguém do mundo dos vivos escute murmúrios.

            Começo com uma pequena reclamação: o título original da obra é The Penelopiad (A Penelopíada) e aqui foi traduzida como A Odisseia de Penélope. Sei que nossa tradução é mais sonora, porém ela acaba com o sentido original. Apesar de usarmos a palavra Odisseia para jornadas longas, cheias de aventura, seu significado original é “A história de Odisseu”, ou “A aventura de Odisseu”. Não faz jus com a proposta do livro.

            Como mostrada no resumo, a proposta da novela é contar a Odisseia do ponto de vista de Penélope, a esposa de Odisseu, conhecida por ter enganado seus pretendentes, dizendo que escolheria um deles após o término da mortalha de seu sogro. Só que ela nunca era terminada, pois à noite Penélope a desfazia e começava novamente no dia seguinte. Como a aparição de Penélope não é tão grande fora da Odisseia, a autora teve que inventar para dar mais enredo à história. Como por exemplo, o boato que não se sabe se é verdade ou não de que Ícaro, rei de Esparta e pai de Penélope, a tenha jogado no mar quando era pequena. Mas ela foi salva por patos, o que fez com que seu pai a visse como especial e não quisesse dá-la a mais ninguém. Por causa disso, Penélope nunca confiou no pai.

            Algo que também se destaca é a rivalidade entre Penélope e sua prima Helena. Penélope tanto a odeia por ser uma metida, que zomba dela por ser menos bela e mais certinha quanto por ser a principal causadora da Guerra de Troia, que levou Odisseu para longe, trazendo vários problemas em sua porta após a saída do marido. Gosto da dualidade das duas: a esposa fiel vs a traidora sedutora; a pata vs o cisne; os dois lados de uma moeda. Pena que não temos a visão de Helena na história.

            Apesar do título, a novela não é composta apenas do ponto de Penélope. Há capítulos em que vemos os pensamentos das doze escravas mortas por Odisseu, devido ao seu relacionamento com os pretendentes. Porém, existia uma boa razão pela qual elas dormiam com eles. Esses capítulos variavam de linguagem, sendo alguns em forma de poesia, outros em prosa ou texto teatral. Foi um bom toque. A linguagem poética e teatral parece fazer referência a como esses mitos eram contados na Grécia Antiga.

            Bastante tempo se passou desde que Penélope foi para o Hades. Ela conta como os espíritos chegaram a ser convocados por magos na idade média e por videntes no século XXI. A mistura dos elementos antigos com os do presente me interessou, por isso, os mencionei aqui neste parágrafo.

            No primeiro parágrafo, fiz uma brincadeira, pois na resenha passada avaliei Circe, que é sobre a bruxa que em alguns mitos teve um caso com Odisseu. Mas nenhuma das duas narrativas estão relacionadas e ambas foram escritas por autoras diferentes. O destino de Penélope e Telêmaco é diferente do que é apresentado no livro que estou resenhando agora. A personalidade deste último também é algo que se difere bastante da novela de Atwood. Diria que Atwood foi mais fiel a Odisseia neste tópico.

            A capa representa bem a cena em que Penélope é salva pelos patos. Só não sei se aquilo ela segura é uma corda, que poderia ser a corda usada para enforcar as escravas, ou um pedaço de tecido que ela usara para fazer sua mortalha.

            De maneira geral, gostei do livro. Seu maior pecado, tirando a tradução do título, é ser curto. A autora poderia ter aumentado um pouco mais com diálogos e histórias sobre a vida de Penélope antes de conhecer o marido. Também poderia desenvolver mais as escravas, dando a elas mais individualidade. Porém, a pouca caracterização delas parece ter sido proposital, para demonstrar o quão eram insignificantes para a história da Odisseia. A única nomeada foi Melanto, a de belas faces, porém isso é tudo que lhe é descrito. Elas são doze, mas agem como um só. Se desejam ouvir as palavras de Penélope, procurem uma vidente para servir como fio telefônico. Ou compre a novela. O que for mais fácil para vocês.

            

 

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Deusa, bruxa e humana


 

             Na resenha passada, falei da Odisseia, que conta a jornada de Ulisses (Odisseu), de volta a Ítaca depois da guerra de Tróia. Agora, é a vez da bruxa da ilha de Eana. Circe foi escrito pela escritora americana Madeline Miller em 2018 e conta a história de Circe, cuja participação na Odisseia foi curta, mas essencial.

            Circe é a primogênita da união de Hélio, deus do sol e Perseis, uma ninfa filha do titã Oceano, deus do grande rio de água doce que rodeia o mundo. Como não nasceu com uma aparência muito boa, sua mãe pouco se importava com ela, dando mais atenção aos seus irmãos. Quando Hélio conta o que acontecem com os astrônomos humanos que erram suas previsões, Circe sentiu algo. Mas o que era esse algo?

         Acreditava que Circe era um personagem que aparecia somente na Odisseia. Mas estava enganada. Além da jornada de Ulisses, Circe aparece em outras duas histórias. A primeira é no mito de Glauco e Cila. Glauco era um ser humano que após ingerir uma planta, se transforma em um deus marinho. Ele se apaixona pela ninfa Cila, que não queria nada com ele e fugia quando o via. Ele pediu a ajuda de Circe, que por ser tremendamente apaixonada por ele e sentir inveja de Cila, a transforma em um monstro. Após sua transformação, Cila foi para o colo de Glauco chorar, porém ele a rejeita devido sua aparência horrenda. Cila então foge para um rochedo próximo ao turbilhão Caríbdis. Ela se tornaria um dos desafios que Ulisses teria de enfrentar na Odisseia. Glauco nunca perdoou Circe pelo seu feito. Não é surpresa dizer que este conto foi alterado no livro para que Circe fosse simpática e atraísse o leitor para seu lado. Também foi modificado a origem de Glauco. Foi Circe que apertou a seiva da flor pharmaka, nascida do sangue dos deuses, na boca de Glauco. Vejo esta mudança como algo positivo pois acrescenta na descoberta dos poderes da personagem.

            A segunda aparição de Circe foi em Jasão e os Argonautas. Após fugir do reino de Aietes, pai de Medeia e irmão de Circe, Jasão para na ilha de Eana para que a bruxa possa fazer o rito de purificação em sua embarcação, pois Medeia havia assassinado o próprio irmão, causando a ira de Zeus e os afastando de sua rota. Esta cena teve mais acréscimos que mudanças de fato.

            Como é um romance, essas três aparições da personagem não seriam suficientes para compô-lo, por isso a autora teve que inventar a maior parte e costurar com os mitos gregos que a gente conhece. Por exemplo, todos os filhos que Hélio teve com Perseis são bruxos capazes de usar plantas como feitiços. Pasifae especificamente, é boa com venenos e usa seus feitiços para matar as amantes de seu marido, Minos, toda a vez que se deitavam com ele, como ela fazia no mito.

        O livro é narrado pela própria Circe, que conta a história desde o ponto que seus pais se conheceram. Me pergunto como ela conhece estes detalhes se ela nem era nascida ainda. Será que os pais contaram a ela mesmo que a mãe claramente não gostasse dela? Ou será que ela ouviu de seus tios e tias do palácio de seu pai? Isto nunca foi explicado. Como personagem, Circe começa como uma deusa inocente, que demora a descobrir seus poderes e é feita de tola por vários personagens. Do meio para o final, isso muda conforme ela vai ganhando mais experiência de vida e se tornando mais forte não só de poder, mas de caráter.

            Quanto aos outros personagens, em boa parte são bons. Mas duas caracterizações me irritaram: A primeira foi Hermes, que apesar de ser descrito como esperto, nunca vi um mito dele em que fosse babaca pelo simples prazer de ser. Aqui, ele vê a humanidade como brinquedo assim como vários dos deuses enquanto nos mitos parecia ser o contrário. A segunda foi de Atena. São poucos os mitos que ela perde a compostura, mas aqui... A imagem que estou mais acostumada é a de uma deusa séria, respeitosa, que quase não demonstra raiva. Apesar de vestir o mesmo elmo e a mesma armadura, esta não é a mesma personagem que conheci na mitologia grega.

          Um tema bastante abordado no livro é a diferença entre os humanos e os deuses. Deuses são imortais e não tem a noção do desespero que os humanos possuem. Se consideram perfeitos, por isso a noção de dor é algo estranho e curioso de se ver. Mas como os humanos, existem classes e brigas por poder. Para eles, os homens são só um divertimento e uma fonte para ganhar presentes. Quanto mais desesperada é a pessoa, melhores são os sacrifícios. É nesse ponto que chegamos na Circe. O jeito que ela age é diferente dos outros deuses, e aos poucos ela se aproxima de nós.

            Tive uma boa leitura. O romance termina em aberto, mas te dá aquela esperança de que tudo acabará bem. Recomendo bastante a adultos que gostam de mitologia grega. E para quem conhece pouco, no final do livro tem a lista dos personagens e um pequeno resumo de suas histórias. Nesta resenha, nossa parada foi em Eana. Agora naveguemos para o Submundo de Hades.