sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Deusa, bruxa e humana


 

             Na resenha passada, falei da Odisseia, que conta a jornada de Ulisses (Odisseu), de volta a Ítaca depois da guerra de Tróia. Agora, é a vez da bruxa da ilha de Eana. Circe foi escrito pela escritora americana Madeline Miller em 2018 e conta a história de Circe, cuja participação na Odisseia foi curta, mas essencial.

            Circe é a primogênita da união de Hélio, deus do sol e Perseis, uma ninfa filha do titã Oceano, deus do grande rio de água doce que rodeia o mundo. Como não nasceu com uma aparência muito boa, sua mãe pouco se importava com ela, dando mais atenção aos seus irmãos. Quando Hélio conta o que acontecem com os astrônomos humanos que erram suas previsões, Circe sentiu algo. Mas o que era esse algo?

         Acreditava que Circe era um personagem que aparecia somente na Odisseia. Mas estava enganada. Além da jornada de Ulisses, Circe aparece em outras duas histórias. A primeira é no mito de Glauco e Cila. Glauco era um ser humano que após ingerir uma planta, se transforma em um deus marinho. Ele se apaixona pela ninfa Cila, que não queria nada com ele e fugia quando o via. Ele pediu a ajuda de Circe, que por ser tremendamente apaixonada por ele e sentir inveja de Cila, a transforma em um monstro. Após sua transformação, Cila foi para o colo de Glauco chorar, porém ele a rejeita devido sua aparência horrenda. Cila então foge para um rochedo próximo ao turbilhão Caríbdis. Ela se tornaria um dos desafios que Ulisses teria de enfrentar na Odisseia. Glauco nunca perdoou Circe pelo seu feito. Não é surpresa dizer que este conto foi alterado no livro para que Circe fosse simpática e atraísse o leitor para seu lado. Também foi modificado a origem de Glauco. Foi Circe que apertou a seiva da flor pharmaka, nascida do sangue dos deuses, na boca de Glauco. Vejo esta mudança como algo positivo pois acrescenta na descoberta dos poderes da personagem.

            A segunda aparição de Circe foi em Jasão e os Argonautas. Após fugir do reino de Aietes, pai de Medeia e irmão de Circe, Jasão para na ilha de Eana para que a bruxa possa fazer o rito de purificação em sua embarcação, pois Medeia havia assassinado o próprio irmão, causando a ira de Zeus e os afastando de sua rota. Esta cena teve mais acréscimos que mudanças de fato.

            Como é um romance, essas três aparições da personagem não seriam suficientes para compô-lo, por isso a autora teve que inventar a maior parte e costurar com os mitos gregos que a gente conhece. Por exemplo, todos os filhos que Hélio teve com Perseis são bruxos capazes de usar plantas como feitiços. Pasifae especificamente, é boa com venenos e usa seus feitiços para matar as amantes de seu marido, Minos, toda a vez que se deitavam com ele, como ela fazia no mito.

        O livro é narrado pela própria Circe, que conta a história desde o ponto que seus pais se conheceram. Me pergunto como ela conhece estes detalhes se ela nem era nascida ainda. Será que os pais contaram a ela mesmo que a mãe claramente não gostasse dela? Ou será que ela ouviu de seus tios e tias do palácio de seu pai? Isto nunca foi explicado. Como personagem, Circe começa como uma deusa inocente, que demora a descobrir seus poderes e é feita de tola por vários personagens. Do meio para o final, isso muda conforme ela vai ganhando mais experiência de vida e se tornando mais forte não só de poder, mas de caráter.

            Quanto aos outros personagens, em boa parte são bons. Mas duas caracterizações me irritaram: A primeira foi Hermes, que apesar de ser descrito como esperto, nunca vi um mito dele em que fosse babaca pelo simples prazer de ser. Aqui, ele vê a humanidade como brinquedo assim como vários dos deuses enquanto nos mitos parecia ser o contrário. A segunda foi de Atena. São poucos os mitos que ela perde a compostura, mas aqui... A imagem que estou mais acostumada é a de uma deusa séria, respeitosa, que quase não demonstra raiva. Apesar de vestir o mesmo elmo e a mesma armadura, esta não é a mesma personagem que conheci na mitologia grega.

          Um tema bastante abordado no livro é a diferença entre os humanos e os deuses. Deuses são imortais e não tem a noção do desespero que os humanos possuem. Se consideram perfeitos, por isso a noção de dor é algo estranho e curioso de se ver. Mas como os humanos, existem classes e brigas por poder. Para eles, os homens são só um divertimento e uma fonte para ganhar presentes. Quanto mais desesperada é a pessoa, melhores são os sacrifícios. É nesse ponto que chegamos na Circe. O jeito que ela age é diferente dos outros deuses, e aos poucos ela se aproxima de nós.

            Tive uma boa leitura. O romance termina em aberto, mas te dá aquela esperança de que tudo acabará bem. Recomendo bastante a adultos que gostam de mitologia grega. E para quem conhece pouco, no final do livro tem a lista dos personagens e um pequeno resumo de suas histórias. Nesta resenha, nossa parada foi em Eana. Agora naveguemos para o Submundo de Hades.

 

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